terça-feira, 13 de setembro de 2016

Concordar é preciso

      Um de nossos alunos escreveu numa redação: “A consciência dos diretos e dos deveres, presente nos países desenvolvidos, caracterizam a verdadeira cidadania.” Há nessa passagem uma falha de concordância: o núcleo do sujeito (consciência) está no singular, e o verbo se encontra no plural (já a flexão do adjetivo o estudante acertou: escreveu “presente”, em vez de “presentes”).
         Quando pedi ao aluno que corrigisse o erro, dele ouvi que eu estava sendo muito severo. Motivo: na última versão do Enem, problemas de concordância não tinham impedido que alguns candidatos obtivessem a nota máxima...
       Expliquei-lhe que a orientação agora é outra. As bancas vão ficar mais atentas ao que determina a Competência 1, que trata da norma culta. E sobretudo vão levar em conta o que está no guia “A redação no Enem 2012”, publicado pelo Inep para orientar os participantes: “Desvios mais graves, como a ausência de concordância verbal, excluem o aluno da pontuação mais alta.” (p. 13). Há desvios graves “quando o sujeito aparece depois do verbo ou muito distante dele (situação em que mais ou menos se encaixa a frase do aluno).
       Não fazer a concordância do verbo quando o sujeito aparece depois é uma tendência do português falado que também se verifica nos textos escritos. Exemplos: “Aconteceu vários acidentes antes”, “Começou os festejos juninos”, “Existia vários tipos de moléstias” etc. A norma culta determina que se escreva “aconteceram”, “começaram”, “existiam”.
          Vale a pena observar, a propósito, o que ocorre com o verbo “haver” quando tem o sentido de “existir”. O fato de considerá-lo intransitivo e pessoal, como os verbos acima, leva o falante ou escrevente a fazê-lo “concordar” com o termo seguinte (gramaticalmente, um objeto direto). Por exemplo: “Haviam vários tipos de moléculas”. Esse tipo de erro aparece numa das redações que receberam a nota máxima no Enem 2012; o aluno escreveu: “É fundamental que hajam debates”.
      Deve-se evitar a flexão de “haver” nesses casos. O que a justifica não é a observância a um preceito gramatical, mas a hipercorreção, ou seja, a tendência a corrigir o que se supõe errado.


terça-feira, 6 de setembro de 2016

Comece... pelo começo

          Muitos alunos perguntam como iniciar a redação. O que pode e o que não pode? Não existe uma fórmula para um bom começo. No caso do texto dissertativo-argumentativo, exigido pelo Enem, o importante é que na introdução se apresente o tema e se antecipe o ponto de vista a ser defendido. 
        Vale a pena lembrar a lição do filósofo grego Aristóteles: a introdução é o que não admite nada antes. Não admitir nada antes significa constituir o delineamento inicial de uma estrutura que se amplia na argumentação e terá o seu remate na conclusão. Nada de pressa para antecipar o que virá depois. Nada de começar pelo meio. Há quem não observe isto e inicie a dissertação, por exemplo, respondendo diretamente ao questionamento feito pela banca.
           Foi o que fez um aluno: “De fato, o conceito de ética varia com o tempo e está relacionado ao contexto histórico-econômico”. A expressão confirmativa (de fato) mostra que ele suprimiu ideias e informações prévias.  Há todo um raciocínio latente que não foi expresso. O estudante achava que o leitor tinha obrigação de conhecer os textos motivadores. A banca os conhece, mas o candidato não escreve para a banca (embora seja ela que avaliará sua produção). Escreve para um leitor indeterminado, que deve ser capaz de compreender o texto com base tão-somente nos dados nele contidos.
         A técnica de começar pelo meio recebeu dos latinos o nome de “in media res”, ou seja, “no meio das coisas”. Essa expressão, retirada da “Arte Poética” de Horácio, designa as narrativas que se iniciam quando a história já está em andamento. É um recurso excelente na ficção, mas não se recomenda em textos nos quais se apresenta e se discute progressivamente um tema (a não ser que o redator tenha muita experiência).
         Se não é recomendável começar o texto pelo meio, pior ainda é começá-lo pelo fim.  Isso ocorre quando, já na introdução, o redator apresenta propostas para resolver o problema. Ou quando, mesmo se propondo a introduzir o tema, ele usa expressões de caráter recapitulativo ou resumitivo. Acham impossível? Pois um de meus alunos iniciou a redação, escrevendo: “Em suma, o problema da violência atinge hoje a totalidade das cidades brasileiras.” Em suma! O que diria Aristóteles se lesse isto? 

É mais grave repetir ideias do que palavras

        Os professores de redação geralmente orientam os alunos a não repetir palavras. A repetição denota pobreza vocabular e torna o texto monótono. Vai de encontro à própria natureza da prosa, que se caracteriza pela progressão diversificada do pensamento.   
         Um de meus alunos levou muito a sério essa recomendação. Tanto que escreveu num texto sobre a diferença na forma como os pais de duas diferentes culturas educam os filhos: “Enquanto nos países latinos os procedentes são tratados com excesso de amor, nos escandinavos eles são tratados apenas com respeito.”  
         O estudante não quis repetir “filhos” e substituiu essa palavra por outra que lhe pareceu adequada. Talvez tenha ido ao dicionário e se deparado com este sentido de “procedente”: “que descende de”, “descendente”. Só que esse vocábulo é um adjetivo, e não um substantivo. Além do mais, não constitui um equivalente semântico para “filhos”. Na melhor das hipóteses funcionaria com um substituto precioso, pouco natural.
      O ideal é que o redator tenha um repertório vocabular que lhe permita variar as palavras. Na falta disso, é melhor repetir do que tornar obscura a mensagem.  Autran Dourado escreve, em “Meu mestre imaginário”, que “não repetir palavras é uma bobagem muito grande”. O que ele diz se aplica sobretudo à prosa literária, na qual a repetição tem valor estilístico, mas vale também para os gêneros em que a maior preocupação é argumentar.  
         Nesses últimos, por sinal, mais grave do que repetir palavras é repetir ideias. A recorrência de conceitos, propostas, informações tende a fazer o texto circular em torno de um mesmo ponto. Sugere que a redação foi mal pensada e que o autor não elaborou um esquema que o conduzisse da introdução à conclusão.

          É possível, mesmo repetindo palavras, fazer avançar o raciocínio e defender com sucesso um ponto de vista. O que não se pode é apresentar com rigor e clareza a opinião num texto truncado, em que a falta do que dizer traduz-se em insuficiência argumentativa. 

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

Evite as firulas verbais

          Segundo João Cabral de Melo Neto, a palavra deve “dizer”.   Uma das formas de “não dizer” é empregar vocábulos inexpressivos ou preciosos. Entre os primeiros, está o adjetivo “complicado”. Vez por outra me deparo em redações de alunos com frases do tipo: “A relação dos jovens com a família é complicada”. Dizer que algo é complicado dá uma ideia muito vaga do que ele representa. Complicado em que nível? Em que sentido? Em que dimensão?              
         Outra palavra que diz muito pouco é “interessante”. Melhor do que escrever “a ONG Tal propôs uma medida interessante para reduzir os danos do efeito estufa” é fugir desse preâmbulo evasivo e dizer logo qual medida foi. Assim como “complicado”, “interessante” paira num limbo semântico; é insípido, incolor. 
       Além disso, aplica-se tanto a ações, quanto a pessoas e coisas. O resultado é que não define nada nem ninguém. O que se quer dizer de uma mulher ao chamá-la de interessante? Isso pode abarcar um espectro que vai de Gisele Bündchen a Madre Teresa de Calcutá. E dá para confiar num termo que ao mesmo tempo qualifica esses dois extremos do comportamento feminino?
     Os exemplos acima constituem falta de rigor, mas não são preciosos. Preciosismo é a escolha de uma palavra rara, às vezes pernóstica, em vez de outra simples e direta. Por exemplo: “Os genitores devem demonstrar amor, valorização e respeito, pois uma boa educação é uma agregação dessas percepções.” Não é de estranhar que alguém que inicia o período por “genitores” (em vez de “pais”) fale em “agregação dessas percepções”.            
      É também inapropriado usar “genitor” como metáfora para causa ou origem, como fez outro aluno: “Por trás do vício da cola esconde-se o genitor das desigualdades sociais: a corrupção”.  Se a corrupção tem genitor, tratemos de descobrir sua possível genitora para impedir que venha à luz esse rebento tão pernicioso ao nosso país.           
     Palavras inexpressivas ou preciosas são inimigas da redação eficiente. Urge escoimá-las, perdão!, é preciso cortá-las do texto sem pena. Hoje não se suporta mais firula nem no futebol.

domingo, 4 de setembro de 2016

Redação comentada

                         Mulher: alvo de pensamentos ultrapassados (1)

A violência contra a mulher, apesar de bastante discutida, ainda é muito frequente na sociedade. O pensamento ultrapassado(2), que não é somente praticado(3) por homens, impede um maior avanço na luta pelo fim dessas agressões. Porém(4), se comparada ao passado, a situação vivida pelas mulheres atuais é muito melhor, mas(4) não é a necessária(3).
            O pensamento ultrapassado de boa parte da população é o maior causador das agressões contra as mulheres. Homens que se consideram superiores e mulheres submissas são os responsáveis pelo elevado número de casos(5) de violência contra a mulher. A existência da Lei Maria da Penha diminuiu o número de casos(5), mas não extinguiu ou se aproximou disso, devido a essas mulheres que se consideram submissas; muitas delas por aceitarem a situação(6) e outras por terem medo do agressor.
            Apesar de ainda existirem agressões verbais, as conquistas femininas diminuíram consideravelmente a frequência desses atos. Mulheres que são julgadas por suas atitudes, como usar roupas curtas ou praticar algum esporte considerado masculino, sofrem agressão verbal. Graças as conquistas do movimento feminista, essas e outras atitudes estão sendo extintas da sociedade, e as mulheres estão chegando cada vez mais próximas de seu objetivo, a igualdade de gênero(7).
            Campanhas publicitárias a respeito da denúncia de agressão à mulher devem ser criadas, para diminuir ainda mais o número de casos não registrados. Expor nelas a necessidade da denúncia e garantir a segurança da mulher é de extrema importância, pois esses(8) são os principais fatores que levam as mulheres a não denunciarem o agressor. Além disso, também é importante mostrar que é necessário que pessoas que presenciem o crime devem fazer a denúncia(9).


                                                           COMENTÁRIOS
           
(1) O título dado pelo aluno, além de mal pontuado, apresenta uma estruturação inadequada. Parece um fragmento de oração. É possível simplificá-lo, preservando a ideia original; por exemplo: “Visão ultrapassada da mulher”.

(2) A expressão “pensamento ultrapassado” é vaga; faltou dizer que pensamento é esse. Levando em conta o contexto, um complemento possível seria: “O pensamento ultrapassado de que é normal bater em mulher” ou “de que a mulher é inferior e pode apanhar”.

(3) Os vocábulos “praticado” e “necessária” devem ser substituídos em nome do rigor semântico. Alternativas possíveis: “partilhado/defendido” e “adequada/suficiente”.

(4) A presença dos conectivos “mas” e “porém” torna ambíguo o ponto de vista do aluno. Não se sabe se ele quer dizer que a situação vivida pelas mulheres atuais é melhor (em relação às do passado) ou se ainda não é a “necessária”. No primeiro caso, a ênfase recai no “porém”; no segundo, recai no “mas”. Como a argumentação e as propostas de intervenção apontam para esta segunda possibilidade, deve-se retirar o “porém”.   

5) Os dois períodos iniciais do segundo parágrafo praticamente repetem informações. É preferível retirar o primeiro período, já que a palavra “casos” (retomada no terceiro período) estabelece a coesão. 

6) Aceitar a situação não é causa de ser submissa. O melhor neste final de parágrafo é destacar a relação de causa e consequência que existe o temor ao agressor e a submissão. Por exemplo: “muitas delas, por medo do agressor, aceitam a situação”.

7) No terceiro parágrafo ocorre falha de progressão; repetem-se as referências às agressões verbais e às conquistas do movimento feminista. Reordená-lo é a melhor forma de resolver o problema. Por exemplo:
         “Mulheres que são julgadas por suas atitudes, como usar roupas curtas ou praticar algum esporte considerado masculino, sofrem agressões verbais. Apesar de tais agressões ainda existirem, as conquistas do movimento feminista diminuíram consideravelmente a sua frequência.  Graças a essas conquistas, essas e outras atitudes estão sendo extintas da sociedade, de modo que as mulheres estão chegando cada vez mais próximas de seu objetivo -- igualdade de gênero.”

(8) Esse pronome retoma as ideias de “denúncia” e “garantia da mulher”; não pode, portanto, se referir aos fatores que levam as mulheres a não denunciar quem as agride. Para haver coerência, “esses” deve ser substituído por termos que designem situações que intimidem a mulher. Por exemplo: “...pois a impunidade dos agressores e o temor de serem alvo de novas agressões são os principais fatores que levam as mulheres a não incriminarem o agressor”.  

(9) Neste último período, há redundância semântica com o uso de “ser necessário” e “dever”; ambos indicam necessidade. Pode-se corrigir o problema retirando um dos dois: “Além disso, também é importante mostrar que as pessoas que presenciem o crime devem fazer a denúncia” ou “Além disso, também é importante mostrar que é necessário que pessoas que presenciem o crime façam a denúncia”. 

sábado, 3 de setembro de 2016

Humor em sala de aula

          O uso de textos humorísticos é um bom meio de ensinar a língua. Ao contrário do cômico, o humor está na linguagem; resulta de desvios em determinados padrões semânticos, estruturais e de pensamento. Seu objetivo é revelar o ridículo ou o absurdo que há em pessoas, fatos, situações. Vejamos alguns recursos capazes de promover o efeito humorístico (as frases foram retiradas de chviana.blogspot.com.br).  
         Um deles é a paronomásia, ou seja, o emprego de palavras que se assemelham a outras quanto ao significante. Por exemplo: “A política é um jogo de faz de contra.” A troca de “conta” por “contra” não apenas sugere que a política é um engodo, uma simulação. Passa também a ideia de que os agentes do jogo político apenas fingem se opor uns aos outros; o adversário de hoje poderá ser o correligionário de amanhã.
       Outro recurso é a paródia, como nesta passagem: “Em briga de marido e mulher, vez por outra um dos dois mete a faca.” A conhecida sentença que nos instrui a não interferir nos conflitos conjugais é trocada por outra em que se aponta, bem realisticamente, uma possível (e nefasta) consequência desses conflitos.
         Paronomásia e paródia podem vir juntas. Exemplo: “Os opostos se atracam.” O objetivo da sentença original (“Os opostos se atraem”) é afirmar a conciliação entre elementos antagônicos. Na versão paródica prevalece a antítese, ou seja, o reconhecimento de que é mesmo impossível harmonizar os opostos. Em “A cerveja que desce... arredonda” também se associam parônimos e paródia (do comercial da Skol), já que se destaca uma consequência indesejável em quem bebe muita cerveja: o aumento do diâmetro abdominal.  
        Outro recurso capaz de levar ao humor é a inversão de palavras.  Por exemplo: “O maior desafio dos casados é impedir que a fase do só nos dois termine em nós dois sós.” A inversão do clichê que celebra a privacidade do casal alerta para uma das armadilhas do casamento, que é levar à solidão a dois. Além da inversão, concorre para o efeito pretendido a mudança de classe morfológica (do advérbio “só” para o adjetivo “sós”).   
        Na área das figuras de pensamento, um conhecido recurso é a ironia. Ela consiste, como se sabe, em dizer o contrário do que se pensa: “Não falem dos médicos. Quando eles nos matam, não sabem o que estão fazendo.” A ignorância dos médicos é apresentada como argumento para que não o critiquem, quando na verdade ocorre o contrário: por lidarem com a vida humana, é imperdoável nesses profissionais o desconhecimento da profissão.
       Também a ambiguidade entre o sentido metafórico e o literal pode ter efeito humorístico. Expressões como “viver de nariz empinado” ou “empurrar com a barriga”, que indicam respectivamente arrogância e desleixo, já não chamam a atenção. Podem no entanto ser “percebidas” em frases do tipo: “Depois que fez plástica, vive de nariz empinado” e “Arranjou uma gravidez indesejada. Agora vai ter que empurrar com a barriga.” A associação entre plástica e nariz , bem como entre gravidez e barriga, sugere o emprego literal daquelas expressões, o que soa engraçado.

                            

O guia para a redação do Enem

     O guia “A redação no Enem 2013”, divulgado pelo Inep para orientar os participantes, traz pequenas mudanças em relação à versão de 2012. Está, por exemplo, mais enxuto na descrição dos níveis de desempenho; diante disso, apresenta com mais simplicidade os requisitos que determinam as diferentes pontuações em cada um desses níveis. 
        Outras mudanças visam tornar a avaliação mais rigorosa. Agora bastam 100 pontos de discrepância nas notas dos dois avaliadores para que as redações sejam submetidas a um terceiro. Dentro de cada competência, um novo examinador será requisitado se a discrepância for maior do que 80 pontos. Ou seja, o aluno será avaliado pelo seu desempeno global e pelo modo como se sai em cada competência.
       Outra novidade, mais ou menos esperada, diz respeito à forma como serão tratadas as redações que “contiverem brincadeiras, provocações ou algum outro tipo de inserção indevida (como receitas de macarrão ou hinos de clube)”. No ano passado, os textos que  apresentaram esses despropósitos foram corrigidos, com a justificativa de que se devia “aproveitar” o que neles havia de bom.
          A partir de agora, serão justificadamente anulados. Concorreu para essa decisão o depoimento dos próprios autores, que confessaram ter feito as brincadeiras para mostrar que as bancas davam notas nas redações sem as ler... Não era difícil desconfiar de uma intenção desse tipo. Quem faz o exame a sério, preocupado com a concorrência, não bagunça o texto com passagens que nada têm a ver com o tema proposto.
     Um aspecto criticável do guia é que ele ainda considera opcional o título da redação. Esperava-se que, atendendo ao apelo de muitos professores, o título passasse a ser obrigatório. Ele é um componente, se não estrutural, arquitetônico do texto. Constitui uma prévia do que se vai ler. Envolve uma importante operação cognitiva, que é a de sintetizar o conteúdo apresentado. 
          O título dá ainda ao candidato a possibilidade de se mostrar criativo num texto, como o dissertativo-argumentativo, em que predominam o rigor e a objetividade. Frequentemente nos deparamos com títulos que são imagens (no sentido literário) ou comentários espirituosos mediante os quais o aluno complementa o seu ponto de vista. Diante disso, não é justo tratar da mesma forma quem põe título e quem não põe.
                                                       


A presença do óbvio

         Ao escrever, deve-se em princípio fugir do óbvio. Nada irrita mais o leitor do que se deparar com informações que ele já conhece ou pode facilmente deduzir. Elas parece que estão no texto para “encher linguiça” e completar o número de linhas.
O óbvio está para o conteúdo assim como o clichê está para a forma. É um lugar-comum mental. Indica pobreza de ideias mais do que de estilo e concorre para baixar a informatividade. Dizendo o que todos já sabem, o redator dá a entender que não tem um pensamento próprio. É uma espécie de “maria vai com as outras” (escrito agora sem hífen, em razão dessa esdrúxula reforma ortográfica).
          São óbvias afirmações como as de que “o Estado deve promover o bem-estar dos cidadãos”, “o capitalismo aumenta a desigualdade social”, “o homem precisa continuamente rever os seus conceitos” etc. etc. Informações desse tipo, de tão batidas, nada acrescentam ao que o leitor já sabe.
          Mas nem tudo no óbvio é inútil. A evidência que ele representa pode ter valor argumentativo, ou seja, servir de reforço a um ponto de vista. Existe um nome para esse recurso: argumento de presença. Por meio dele se realça uma verdade indiscutível, um conceito ou ideia que as pessoas devem ou deveriam ter em mente.   
         Esse tipo de argumento aparece, por exemplo, nesta passagem da redação de um aluno: “A adolescência é uma idade de conflitos e insegurança, por isso o adolescente deve ser orientado em suas escolhas”. O que ele afirma na primeira oração não é novidade. Psicólogos, pedagogos, terapeutas (e os pais, pelo que experimentam em casa!) sabem que os conflitos e a insegurança em boa medida caracterizam o universo mental dos adolescentes.   
          Geralmente quem formula o argumento de presença não o faz apenas para “dizer de novo” o que já se sabe. Procura associá-lo a outros recursos argumentativos. No exemplo que acabamos de mostrar, a verdade enfatizada pelo estudante serve de reforço ao apelo que ele faz na segunda oração (no sentido de que se devem orientar os indivíduos nessa faixa de idade).
        Por que precisamos trazer à tona o óbvio? Porque o ser humano comumente se alheia de princípios que não poderia nem deveria esquecer. Isso o leva a negligenciar deveres, distorcer valores, praticar injustiças contra si ou contra os outros. Repetir antigas verdades é sempre uma forma de chamá-lo à razão.

O título na redação do Enem

O Enem não obriga o candidato a intitular a redação, mas é recomendável que ele o faça. Uma redação com título sugere que o autor tem uma visão global do texto. Sendo o resumo dos resumos, o título é uma generalização que dentro do possível unifica as informações. Indica um maior domínio sobre o que foi expresso. No esforço de intitular, o candidato rearticula mentalmente as partes e faz um retrospecto que pode, inclusive, revelar falhas na unidade.    
Uma das justificativas para que não se intitule a dissertação argumentativa é que ela é um gênero escolar. Ao contrário de outros gêneros, dirige-se a um examinador (ou examinadores) que está mais interessado em avaliar a consistência dos argumentos e a forma como se articulam para conduzir à conclusão. O fato de ser produzido na escola, contudo, não faz com que a dissertação argumentativa seja diferente de outros textos de opinião (artigos, editoriais, cartas argumentativas). Nela existe uma personalidade autoral, que se evidencia logo a partir do momento em que escolhe uma denominação para “rotular” o que escreveu.
Outra justificativa para não intitular é que o título não representa um componente estrutural. Ele não se insere na estrutura, é certo, mas constitui importante elemento arquitetônico. Quando produzido com inteligência e criatividade, valoriza a redação e “fisga” o leitor. Ao se deparar com o título, o examinador já tem uma primeira noção sobre se o candidato compreendeu o que estava sendo pedido. Títulos genéricos remetem mais ao assunto do que ao tema. Quando não se relacionam com o que está no corpo do texto, mostram que o autor não sabe sobre o que escreveu.   
O título pode, como dissemos, consistir num resumo ou destacar algum aspecto que o autor ache importante. Pode sugerir uma atitude, uma reação ao tema enfocado. Num gênero marcado pela objetividade, como é a dissertação argumentativa, ele às vezes aparece sob a forma de imagens, ironias, jogos de palavras, revelando a disposição pessoal. Um de meus alunos deu a um texto sobre a violência urbana o título de Cidades reféns. Outro intitulou uma redação sobre o bullying de Bulindo com os outros. A escolha foi espirituosa e pertinente, sobretudo quando se consideram alguns dos sentidos do verbo “bulir” (caçoar, zombar, molestar etc.).
Como tudo que se liga à produção de textos, dar bons títulos depende de exercício. Algumas dicas podem ajudar: 1) leia e releia o texto com atenção; 2) observe atentamente os tópicos dos parágrafos, nos quais se concentram as ideias principais; 3) faça um resumo mental da conclusão, atento às sugestões nela contidas.
Quanto ao formato, o título aparece geralmente como frase nominal (Antigas mazelas do Brasil; Marcas da violência urbana); mas também pode aparecer como um período (É preciso preservar a vida).  Em qualquer dos casos não é necessário pontuá-lo, a não ser que ele constitua uma pergunta retórica (Miséria é mesmo destino?). É recomendável evitar títulos com pontos de exclamação e reticências (Um drama nacional!; Uma difícil espera...). Alguns estudantes usam estes sinais à procura de ênfase ou sutileza, mas terminam comprometendo a objetividade.
         Com base na produção de alunos, segue uma lista do que se deve ainda evitar para que o título seja direto e objetivo:
-- afirmações vagas (Algo precisa mudar);
-- gírias e lugares-comuns (Ou vai ou racha; O esporte nacional com tudo em cima);
-- expressões ambíguas (O temor da juventude) - Não se sabe se é o temor que a juventude sente, ou o que ela inspira; 
-- sinais matemáticos e semelhantes (Tecnologia + ecologia = desenvolvimento; Evolução x Educação);
-- uso de ponto e vírgula (Família; a base de nossos valores) - Prefira travessão ou mesmo vírgula (Família – a base de nossos valores; Família, a base de nossos valores);
-- excesso de palavras (A questão é: progredir sem degradar) – Bastaria: Progredir sem degradar;
-- truncamento de sintagmas ou orações (Natureza: ameaçada por um erro capital) - Melhor seria: Uma grande ameaça à natureza.
       O título é um letreiro, um chamariz. Vale a pena investir nele.

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Use vocábulos precisos

      Uma das condições para escrever bem é usar as palavras com precisão. Infelizmente nem sempre se constata essa virtude nas redações, por motivos que variam da semelhança entre os vocábulos (parônimos) ao desconhecimento do que eles significam.
      Precisão não é concisão. A concisão se relaciona com o pensamento e a estruturação da frase. É a capacidade de dizer o essencial com poucas palavras. Um texto conciso é aquele em que não há o que cortar. A precisão, por sua vez, diz respeito ao emprego exato das palavras. Exige o conhecimento do dicionário e a percepção dos sentidos que os vocábulos assumem nos variados contextos. O oposto da concisão é a redundância; o oposto da precisão é a ambiguidade.  
          Vejamos alguns casos extraídos de redações. Entre os verbos, é comum a escolha indevida de “suprir”, “sofrer” e “melhorar”. Exemplos:
    - “O diálogo é de extrema importância para construir um mundo mais humano e suprir os conflitos.”
- “O país sofreu grandes avanços nos últimos anos.”
- “Há algumas semanas, o governo viu na importação de médicos estrangeiros uma das formas de melhorar esse problema.” 
       “Suprir” significa “preencher”, “prover”, “completar”. É inadequado, então, afirmar que se “supre” um conflito. O engano talvez se explique pela confusão que comumente se faz entre esse verbo e “evitar”, ou “solucionar”. É também inexato dizer que um país “sofre avanços”. “Sofrer” significa “padecer”, “ser alvo de um golpe físico ou emocional”. Essa ideia não se compatibiliza com a euforia que os avanços sociais e econômicos trazem. Um país “experimenta” ou “passa por” avanços.  
      “Melhorar um problema” não deixa de ser ambíguo. Seria aperfeiçoar o problema e com isso torná-lo, digamos, mais problemático? Ou se trata de reduzir os seus efeitos? Em nenhuma das duas possibilidades se cogita do essencial, que é “resolvê-lo”.
         Entre os adjetivos não raro se confunde “propenso” com “propício”, como se vê nesta passagem: “As pessoas que têm amigos felizes e saudáveis são também propícias a seguir o exemplo deles.” “Propenso” quer dizer “tendente”, “suscetível”. É o particípio irregular do verbo “propender”, com o qual se relaciona o substantivo “propensão” (tendência). Já “propício” significa “conveniente”, “adequado” (fala-se, por exemplo, de uma “ocasião propícia”).
        Há trocas que podem comprometer o redator. Num texto sobre ciência e religiosidade, um aluno escreveu: “Logo, se faz necessário que os religiosos sejam mais volúveis em relação aos dogmas de suas igrejas.” Ao confundir “flexíveis” com  “volúveis”, ele sugere que os religiosos sejam levianos, mudem facilmente de opinião acerca de pontos fundamentais de suas crenças. Conselho nada edificante!   
         Quando a confusão se dá entre parônimos, pode ocorrer ou não um leve parentesco semântico. Num ou noutro caso, as escolhas por vezes soam engraçadas. Confiram:   
- “A corrupção está agarrada na mentalidade dos países subdesenvolvidos.”  
- “Funcionários públicos roubam os impostos para custear o luxo, e a população, mesmo dotada de cerne, não faz nada a respeito.”
- “A ONG Luz da Vida representa uma melhor alternativa para as raras e mal gestadas clínicas de reabilitação do governo.”
- “No ápice dos seus 40 anos, Ana Cláudia trabalha como farmacêutica em uma distribuidora de remédios e produtos farmacêuticos.”
        A corrupção não “se agarra” – “se arraiga”. Há um nexo nessa troca, pois o que se enraíza “se agarra” mesmo na terra, mas o vocábulo escolhido está mal empregado. Quanto a “cerne”, embora tenha idêntico radical, não é o mesmo que “discernimento”; significa “âmago”, “centro”. “Discernimento” é a capacidade de julgar, perceber diferenças, e caberia bem na frase do aluno. 
         “Gestar” nada tem a ver com “gerir” (administrar). Certamente a troca de “geridas” por “gestadas” se deveu ao contexto; gestar é “formar e sustentar (um filho) no próprio organismo”. Não está claro, por fim, o que significa “ápice dos seus 40 anos”. Seria o quadragésimo nono ano, ou seja, um apenas antes que se completem os cinquenta? É pouco provável. O aluno quis se referir à faixa etária em que, pela experiência e maturidade, o indivíduo está no auge.


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Paralelismo semântico

         Quando se coordenam palavras, é importante que elas pertençam à mesma área de significação. Caso isso não ocorra, pode haver uma ruptura do paralelismo. Esse tipo de quebra produz muitas vezes correspondências indevidas, como neste exemplo:  
      “A diferença entre o IDH dos países pobres e os países ricos é resultado sobretudo da educação.”
      O aluno se propõe a estabelecer o contraste entre dois IDH´s (Índices de Desenvolvimento Humano). Para isso inicia um processo coordenativo em que o primeiro termo é a sigla seguida de um adjunto adnominal.  Espera-se que no segundo ele mantenha o mesmo padrão, falando do IDH dos países ricos. Como isso não ocorre, o resultado é um confronto entre elementos heterogêneos. Não se pode comparar um índice com um país.
        Outro exemplo aparece nesta passagem de uma redação sobre os desafios de quem chega à cidade grande:
       “Armadilhas, tentações, interesseiros irão lhe acompanhar aonde você queira ir.”
       Embora os três núcleos do sujeito estejam representados por substantivos (ou seja, não há quebra do paralelismo morfossintático), é visível a ruptura produzida pelo terceiro. Os dois primeiros são genéricos, remetem às ações, enquanto que o último designa o agente. Para haver harmonia semântica, o aluno deveria ter escrito “interesses” em vez de “interesseiros”.  
        Exemplo semelhante ocorre neste outro trecho:
       “A partir de então, na empresa, foi vítima do ciúme, do ressentimento, dos agressores que a invejavam.”
       Se o redator inicia a sequência de complementos com “ciúme” e “ressentimento”, é natural que a feche com uma palavra do mesmo nível semântico. Escrevendo, por exemplo, “da agressividade dos que a invejavam”.
     Às vezes a ruptura é discreta, mas nem por isso deixa de comprometer a unidade do período. Muitos talvez não percebam que ela ocorre no exemplo abaixo:  
       “O dinamismo econômico dita a capacitação profissional e os serviços mais qualificados.”
       Mas ocorre, sim. A frase ficaria mais harmoniosa caso os dois complementos fossem da mesma natureza, o que se obtém com uma pequena inversão dos termos que formam o segundo objeto direto: “O dinamismo econômico dita a capacitação profissional e a maior qualificação dos serviços.”
        A quebra do paralelismo pode ter caráter estilístico, como nesta famosa passagem de Machado de Assis:
         “Marcela amou-me durante 15 meses e 11 contos de réis".
         A menção ao dinheiro surpreende o leitor, que espera a continuidade da indicação temporal. Ao coordenar informações que não têm relação uma com a outra, o narrador enfatiza que a moça não esteve com ele por amor; agiu por interesse. Outro seria o efeito se essa confissão aparecesse em outro contexto. Seria uma referência crítica e talvez nostálgica, mas a que faltaria a nota irônica.