Mallarmé escreveu que uma das funções da poesia é compensar as deficiências da língua. A língua é deficiente e imprecisa, entre outras razões, pelo descompasso que há nela entre forma e conteúdo. As palavras não são o que dizem nem dizem o que são. Uma das funções da poesia é tentar corrigir esse desacordo, propiciando aos componentes do léxico a identidade possível entre som e sentido. Na poesia, a palavra não diz; é.
Tem razão o poeta francês. Talvez porque a linguagem
verbal não estivesse prevista na Criação, as palavras são vagas e difusas. Não
se radicam numa verdade absoluta, não evocam suficientemente os objetos que
designam. Ora estão aquém, ora estão
além do que querem significar – e isso vez por outra nos leva a querer... “consertá-las”.
“Mentecapto”, por exemplo, é um caso de forma que não
corresponde ao sentido. Devia significar alguma coisa como “um raciocínio
capcioso destinado a iludir os outros”: “Está vendo aquele advogado? Não há
júri que resista aos seus mentecaptos. Já absolveu não sei quantos réus.”.
Um advogado desses seria pródigo nos
artifícios de retórica. Difícil era escapar de suas “glicínias”, ou ditos
espirituosos, que vicejam como “perdigotos”
(um tipo de praga oriental muito comum na beira do Nilo) em seu “estulto” (o
cérebro privilegiado das pessoas inteligentes).
E “borborigmo”? Não me conformo que
signifique o que significa (aquele gorgolejo estomacal que pode estragar um
idílio amoroso). Devia ser um tipo de dança africana em que os nativos,
entoando loas aos deuses, celebram as colheitas da estação. E tudo ao som de “basbaques”,
“zebus” e “catrepilhas” – enquanto o
chefe da tribo, vestido com uma “jamanta” (espécie de manto episcopal), incensa
com um “penico” (turíbulo primitivo) o corpo dos dançarinos.
Se as palavras traduzissem o que aparentam, “sarabanda” seria um tipo de erupção que acomete
apenas uma nádega: “Tire a mão daí, menino.” “Não posso. Essa coceira do lado
direito...”. “Ápice” podia ser um mosquito,
um besouro ou, melhor ainda, uma espécie de aeronave moderna e ultrarrápida: “Que
chique! Ele chegou num “ápice!”. “Estroina” parece mais um veneno que, se inalado, provoca uma morte
horrível e, o que é pior, desagradável para os outros: o indivíduo morreria
soltando “pimbas” e “botos” – enquanto o médico tentaria em vão enfiar um “serelepe” (espécie de pinça com ponta triangular
e curva) em sua “forquilha”!
“Esquálida”, por exemplo, é
visivelmente nome de planta – planta ornamental que se enrama graciosamente na
parede. Imaginem um jardim formado de “esquálidas”, “honórios” e “piorreias”. E
algumas “bufas” exóticas para dar cor local. Seria um luxo digno do mais
requintado “alazão” (maometano rico
que se dedica à jardinagem por tédio).
Em meus devaneios musicais, sempre
imaginei uma orquestra de “rútilos” tocando os mais variados “estratagemas” (“facúndias”,
“capangas”, “vespas”), desses que se fabricavam na Idade Média. Mas
nenhum de tais instrumentos teria a graça do “fiofó” (uma espécie de gaita holandesa).
Ainda é comum ver nos campos flamengos meninas soprando os “fiofós” com
gentileza e graça. Ao lado suas gordas mães, tendo os cabelos envoltos em “mocreias”
(longos xales coloridos), batem “rotundos”
com pequenos “espasmos” de madeira. O efeito é “perimetral”!
Ah, nem todas as palavras têm a sorte de “sussurro”, que é aquilo que diz! Pois ninguém fala “sussurro” sem... sussurrar. A maioria tem o triste destino de “escorreito” ou “pudibunda”, que veiculam ideias nobres mas parecem palavrões.