sábado, 10 de abril de 2021

Diminutivos

 

Poucos recursos são tão engenhosos na língua quanto o diminutivo. Ele não é apenas uma medida de tamanho ou de valor; é sobretudo uma forma de nos colocarmos no mundo. Uma estratégia de convivência, um meio de nos relacionarmos com as pessoas. Sem o diminutivo teríamos que enfrentar tudo em grau normal, quer dizer, na crua dimensão da realidade.

O diminutivo é tão importante que merecia uma ode (está bem... uma “odezinha”). Ele é por excelência um recurso de abrandamento e nos torna mais simpáticos. O burocrata não pode ou não quer atender alguém e diz, para encorajá-lo a se manter sentado: “Um momentinho.” Esse “momentinho”, claro, pode se desdobrar em horas. Mas o diminutivo vai ecoar no tempo de espera como um pedido de desculpas. Não dá para ter raiva de quem é delicado conosco.

Comumente o diminutivo traduz afetividade. Dele abusam os namorados quando se dirigem aos seus “queridinhos” e “queridinhas”. E as crianças se derretem diante dos “bichinhos” de estimação. Vinicius, que o Brasil ama, ficou conhecido como “o Poetinha” (por sinal, ele deve agora estar tomando um “uisquinho” em companhia de algum anjo).

Outro efeito do diminutivo, e que está registrado nas gramáticas e nos manuais de estilo, é o de depreciação. Se um filme não presta, diz-se que é um “filmezinho” – mesmo que ele não dure aquém do tempo normal. A metragem mais longa, por sinal, não o transformaria num “filmão”. 

Na maior parte das vezes, o diminutivo é apenas o invólucro de um conteúdo ameaçador. Se a sua mulher diz que está louca por um “vestidinho” que viu em tal vitrine, prepare-se para a má notícia: ele não custa menos de R$ 1.000,00! E quando o dentista diz que não vai doer, é só uma “picadinha”? Por acreditar nisso quando era pequeno, acabei traumatizado. Hoje não suporto dentistas, sobretudo os que nos enganam com diminutivos. São uns... “dentistinhas”.

O diminutivo pode ser ainda um recurso de falsa modéstia. O escritor fala do seu “livrinho” diante dos colegas, mas no fundo o considera uma obra-prima. Talvez, quem sabe, lhe renda um “premiozinho” (e por que não o Nobel?). O ricaço compra um modelo sofisticado de automóvel e, para nos humilhar, chama-o de “carrinho”.

Também se usa o diminutivo como um recurso de intensificação ou, dizendo melhor, de esmiuçamento. O filho aprontou na escola e quando chega em casa ouve da mãe, que está uma fera: “Agora me conte o que houve. Tudinho”. “Tudinho” é tudo mesmo, sem lacunas nem disfarces. E o guri, se for inteligente, detalhará o que aconteceu para evitar umas “palmadinhas” (ou mesmo umas palmadas, pois ainda há pais e mães que não têm medo de ser denunciados).

O diminutivo se popularizou numa época em que é cada vez mais difícil ter um vidão – ou mesmo uma vida. São tantas as restrições e os perigos, que à maioria de nós cabe mesmo uma “vidinha”. E para não sucumbirmos, a saída é dar um “jeitinho” em tudo. O “jeitinho”, que é uma marca do caráter brasileiro, traduz o reconhecimento de que nada se resolve de fato mas nem por isso se deve perder a esperança. Há sempre uma “luzinha” no fim do túnel. Se não quer brilhar para nós, sempre é possível a gente dar uma “piscadinha” para ela.   

         Mas vejo que está na hora de terminar esta “croniquinha”, para que o leitor não perca a paciência e acabe me endereçando um... palavrão!

domingo, 14 de março de 2021

Concisão: o menos vale mais


           “Quem muito fala muito erra” – diz o ditado. E quem muito escreve, além de também correr o risco de errar, tende a se perder no excesso de palavras. O exagero dessa tendência constitui a verborragia, ou seja, o ato de escrever demais e expressar um mínimo de ideias.

         O oposto da verborragia é a concisão, que se define como a economia de palavras. O poeta Jose Paulo Paes destaca essa qualidade em “Poética”: Conciso? Com siso // Prolixo? Pro lixo.” Jogando com os homônimos, ele afirma que o que é escrito com poucas palavras revela sensatez. E o que tem palavras em excesso (prolixidade é a “demasia ao falar ou escrever”) deve ir para o lixo. O poeta pratica o que defende, pois seu poema não tem mais do que dois versos.

         Um dos maiores desafios para quem escreve é eliminar o entulho verbal. Às vezes o autor tem que escrever duas ou mais versões do texto, sempre cortando, para chegar à simplicidade e à clareza que garantem a comunicação.

          Deparo-me com alguns desses entulhos em redações de alunos e vou tratar de dois deles aqui. O primeiro é a duplicação de palavras. Parece que usar apenas um verbo, ou um substantivo, não satisfaz o redator. É preciso emparelhá-lo com outro, embora nem sempre o resultado seja bom.  

      Por exemplo: “Necessitamos de medidas para ‘preservar’ e ‘cuidar’ do ecossistema”, “O trabalho ‘estimula’ e ‘eleva’ o amor-próprio”, “Nosso sistema carcerário ‘limita’ e ‘inibe’ a reintegração do preso à sociedade”, “Os pais precisam ‘orientar’ e ‘dirigir’ os filhos”, “É preciso manter a ‘atenção’ e o ‘foco’ nas metas”, “O professor deve estimular a ‘solidariedade’ e a ‘união’ do grupo”.

     O propósito do aluno é dar ênfase, mas o que ele consegue é o oposto. Um dos termos, por nada acrescentar ao outro ou estar nele contido, acaba enfraquecendo-o. Na correção deve-se cortar o que tem menor peso semântico. Basta dizer, por exemplo, “Necessitamos ‘preservar’ o ecossistema”. É impossível preservar sem cuidar (que por sinal é um verbo transitivo indireto, de modo que o aluno também cometeu uma falha ao atribuir o mesmo objeto a verbos de regências diferentes). O corte de um dos termos é recomendável em todos os exemplos do parágrafo anterior. Se o leitor tem dúvida, faça o teste.

    O segundo tipo de entulho está representado pelos os lugares-comuns. A farta presença deles nas redações preocupa, pois indica padronização do raciocínio e falta de visão crítica. O lugar-comum, como diz Alcir Pécora, é na verdade, um lugar de ninguém, uma cidade fantasma”.   Dá aos textos um aspecto indiferenciado e os torna previsíveis, sugerindo que foram escritos por um só autor.

          Um dos mais lugares-comuns frequentes é a tal “pergunta que não quer calar”. Outro é “valorizar o ter em detrimento do ser”, infalível quando se trata de criticar os efeitos do consumismo ou da globalização. A “falta de vontade política” é argumento desgastado para justificar a incompetência dos governantes que se tornam insensíveis “à voz rouca das ruas” (esse já martelou muito nossos ouvidos). Se o tema envolve o futuro ou a profissão, são comuns expressões como “priorizar as habilidades”, “manter o foco nas metas” ou agir “com garra e determinação”. Enfim, clichês é que não faltam. Para evitar o abuso vale a pena invocar a sabedoria grega, expressa neste lugar-comum eterno: a virtude está no meio.

            Um bom exercício para aferir o valor da concisão é reescrever provérbios. Costumo levar aos alunos essa prática, que tem de quebra o mérito de fazê-los consultar o dicionário. Leia a reescrita das sentenças que seguem e compare-as com a sua versão proverbial (entre parênteses). A formulação sintética realça a verdade que existe nelas e aumenta o impacto sobre o leitor:

 

1) Cada espécime dos primatas deve permanecer na subdivisão do caule de uma árvore ou arbusto que lhe é devida. (Cada macaco no seu galho.)

2) O Todo-Poderoso presta assistência aos que antes da ocasião própria levantam da cama ao alvorecer. (Deus ajuda quem cedo madruga.)

3) Quem sente grande afeição por alguém de aparência desagradável, desproporcional ou disforme, terá a impressão de que essa pessoa lhe suscita prazer estético. (Quem ama o feio, bonito lhe parece.)

4) Cada indivíduo cujo comportamento ou raciocínio denota alterações patológicas das faculdades mentais cultiva seus hábitos peculiares e obsessivos. (Cada louco com sua mania.)

5) Aquele que não dispõe de um mamífero carnívoro da família dos canídeos persegue animais silvestres para caçar ou matar com um pequeno mamífero carnívoro, doméstico, da família dos felídeos. (Quem não tem cão casa com gato.)

 

        Graciliano Ramos, que é um mestre da tesoura, costumava lembrar que a palavra deve “dizer”, e não servir de preenchimento para compensar o vazio das ideias. Tem razão o autor de “Vidas Secas”. Ser conciso, exato, além de transmitir o essencial demonstra respeito pelo leitor, que não vai perder tempo lendo o que nada lhe acrescenta.

domingo, 24 de janeiro de 2021

Palavras


 Mallarmé escreveu que uma das funções da poesia é compensar as deficiências da língua. A língua é deficiente e imprecisa, entre outras razões, pelo descompasso que há nela entre forma e conteúdo. As palavras não são o que dizem nem dizem o que são. Uma das funções da poesia é tentar corrigir esse desacordo, propiciando aos componentes do léxico a identidade possível entre som e sentido. Na poesia, a palavra não diz; é.

Tem razão o poeta francês. Talvez porque a linguagem verbal não estivesse prevista na Criação, as palavras são vagas e difusas. Não se radicam numa verdade absoluta, não evocam suficientemente os objetos que designam.  Ora estão aquém, ora estão além do que querem significar – e isso vez por outra nos leva a querer... “consertá-las”.

“Mentecapto”, por exemplo, é um caso de forma que não corresponde ao sentido. Devia significar alguma coisa como “um raciocínio capcioso destinado a iludir os outros”: “Está vendo aquele advogado? Não há júri que resista aos seus mentecaptos. Já absolveu não sei quantos réus.”.

         Um advogado desses seria pródigo nos artifícios de retórica. Difícil era escapar de suas “glicínias”, ou ditos espirituosos, que vicejam como “perdigotos (um tipo de praga oriental muito comum na beira do Nilo) em seu “estulto” (o cérebro privilegiado das pessoas inteligentes).

         E “borborigmo”? Não me conformo que signifique o que significa (aquele gorgolejo estomacal que pode estragar um idílio amoroso). Devia ser um tipo de dança africana em que os nativos, entoando loas aos deuses, celebram as colheitas da estação. E tudo ao som de “basbaques”, “zebus” e “catrepilhas” – enquanto o chefe da tribo, vestido com uma “jamanta” (espécie de manto episcopal), incensa com um “penico” (turíbulo primitivo) o corpo dos dançarinos.

          Se as palavras traduzissem o que aparentam, “sarabanda” seria um tipo de erupção que acomete apenas uma nádega: “Tire a mão daí, menino.” “Não posso. Essa coceira do lado direito...”. “Ápice” podia ser um mosquito, um besouro ou, melhor ainda, uma espécie de aeronave moderna e ultrarrápida: “Que chique! Ele chegou num “ápice!”. “Estroina” parece mais  um veneno que, se inalado, provoca uma morte horrível e, o que é pior, desagradável para os outros: o indivíduo morreria soltando “pimbas” e “botos” – enquanto o médico tentaria em vão enfiar um “serelepe” (espécie de pinça com ponta triangular e curva) em sua “forquilha”!

         “Esquálida”, por exemplo, é visivelmente nome de planta – planta ornamental que se enrama graciosamente na parede. Imaginem um jardim formado de “esquálidas”, “honórios” e “piorreias”. E algumas “bufas” exóticas para dar cor local. Seria um luxo digno do mais requintado “alazão” (maometano rico que se dedica à jardinagem por tédio).

         Em meus devaneios musicais, sempre imaginei uma orquestra de “rútilos” tocando os mais variados “estratagemas” (“facúndias”, “capangas”, “vespas”), desses que se fabricavam na Idade Média. Mas nenhum de tais instrumentos teria a graça do “fiofó” (uma espécie de gaita holandesa). Ainda é comum ver nos campos flamengos meninas soprando os “fiofós” com gentileza e graça. Ao lado suas gordas mães, tendo os cabelos envoltos em “mocreias” (longos xales coloridos), batem “rotundos” com pequenos “espasmos” de madeira. O efeito é “perimetral”!

          Ah, nem todas as palavras têm a sorte de “sussurro”, que é aquilo que diz! Pois ninguém fala “sussurro” sem... sussurrar. A maioria tem o triste destino de “escorreito” ou “pudibunda”, que veiculam ideias nobres mas parecem palavrões.          


domingo, 17 de janeiro de 2021

A redação do Enem 2020

 

Muito oportuno o tema do Enem 2020. A doença mental é tradicionalmente vista com preconceito pela sociedade. Considerava-se que os que padeciam de tal enfermidade purgavam um castigo espiritual por infringir algum código sagrado. Ouvi muito dizer, na minha infância, que a depressão era a ausência de Deus.  

A banca se refere a “estigma” para ressaltar o nível de rejeição a que o doente mental está frequentemente sujeito. O estigma é uma marca, um sinal associado ao que é indigno e desonroso. No domínio da religião, designa as marcas aplicadas aos santos em seus corpos como uma forma de penitência. O termo, como se vê, tem uma forte ligação com a ideia de pecado e arrependimento. Ao estigmatizar alguém, tornamo-lo objeto do nosso repúdio. 

Graças à Psicanálise e ao conhecimento da bioquímica do cérebro, essa concepção negativa da doença mental tem mudado. O depressivo não é nenhum pecador, pelo contrário: seu avultado superego torna-o excessivamente atento aos imperativos éticos. Ele sofre com suas culpas em elevada desproporção ao que faz ou deseja. E isso ocorre, em alguma medida, porque em seu cérebro existe a carência de neurotransmissores como a serotonina. O depressivo está doente e precisa ser tratado.   

A despeito de conquistas como as citadas acima, o estigma ainda é forte – por desinformação ou pelo mero propósito de rejeitar quem é diferente. Caberia ao aluno apontar como se manifesta essa marca “na sociedade brasileira”, o que o levaria a comentar aspectos da nossa formação e dos valores (ou antivalores) que regem o nosso comportamento social.

É oportuno lembrar que o momento pelo qual passamos poderia ser apresentado como um exemplo do peso das relações sociais nas doenças da mente. O confinamento e o medo têm levado muitas pessoas a procurar atendimento psicológico. Aumentaram os casos de transtorno de ansiedade e depressão não apenas entre os jovens. Também cresceu a violência doméstica. Incluir na argumentação a pandemia e os seus efeitos constituiria um ponderável reforço argumentativo ao desenvolvimento do tema.

O importante é que o tema escolhido pelo Enem este ano chama a atenção para um aspecto crucial das patologias mentais: a influência da organização social sobre elas. Se muitos indivíduos adoecem, a sociedade também está doente. Caberia ao candidato, na proposta de intervenção, sugerir meios de promover harmonia ao psiquismo das pessoas. Os agentes responsáveis por tal ação não destoariam dos que são comumente elencados nas redações: a família, educando; a escola, instruindo; e o governo, comprometendo-se com a ética e com o amparo aos que, sem condições socioeconômicas, padecem desse tipo de distúrbio.