A
coesão é um dos principais requisitos para um agrupamento de palavras constituir
um texto, pois promove a articulação dos elementos que o compõem. É o arcabouço
formal de que deriva a coerência, e se constrói “através de mecanismos gramaticais
e lexicais” (Costa Val, 2006, p. 6). Se os componentes linguísticos não se
articulam por meio de tais mecanismos, tem-se um ajuntamento de palavras incapaz
de comunicar a intenção de quem escreve.
As falhas coesivas são comuns em
redações de vestibulandos. Ultrapassam em quantidade os deslizes decorrentes do
uso inadequado das palavras. Envolvem, além do plano lexical, aspectos morfológicos
e sintáticos, comprometendo a estruturação do pensamento. Também comprometem o
sentido, pois é a continuidade promovida pela coesão que assegura a inteireza
semântica do texto. Segundo Irandé Antunes, “a continuidade que se instaura
pela coesão é, fundamentalmente, uma continuidade semântica” (2005, p. 50).
O assunto é objeto de uma diversificada
teoria, que não cabe discutir aqui. Nosso propósito é comentar algumas falhas
nesse importante fator de textualidade a partir de material produzido por
nossos alunos. Elas, grosso modo, decorrem do uso inadequado dos conectivos, do
cruzamento de estruturas sintáticas e da falta de correlação entre classes
morfológicas. A esse conjunto soma-se o emprego abusivo do advérbio relativo “onde”
(o chamado “ondismo”), que preferimos manter num grupo à parte. Vejamos alguns
casos que exemplificam cada uma dessas possibilidades.
I - Uso inadequado dos conectivos
Os conectivos são responsáveis pela
articulação lógico-sintática de termos simples e orações. A falha no seu
emprego gera incoerência e obviamente compromete a unidade textual. Alguns
exemplos:
(a) “Como os adolescentes têm o organismo menos
resistente, por isso
podem virar dependentes logo
cedo.”
(b) “O avanço
tecnológico , além
de suas vantagens
e comodidades , traz preocupação
a todos nós .”
(c) “Não queria deixar
vovó sozinha a tão pouco tempo da morte do meu avô .”
(d) “O cigarro
é uma irracionalidade , mas não podemos aplaudi-lo”.
(e) “Uma das práticas que até agora não foi elaborado o conceito
é a do ‘ficar’”.
(f) “O sofrimento é uma etapa da vida em que
todos passam por
ela .”
(g) “Perdi meu
pai e fui morar
com meu
tio em
Areia; ele era um sacerdote, no qual aprendi as minhas
primeiras noções de latim.”
Em (a), o uso simultâneo da conjunção causal e da
consecutiva mostra que o aluno foi incapaz de perceber que as circunstâncias
por elas indicadas se expressam com a presença de apenas um dos conectivos. A
indefinição quanto à oração principal não gera propriamente incoerência, mas
dificulta a apreensão da mensagem.
Incoerência ocorre nas três
passagens seguintes. Em (b), trocou-se um conectivo concessivo (apesar de) por
um aditivo (além de). O uso de preposição em lugar de verbo, em (c), transforma
passado em futuro e dá a impressão de que o autor da frase foi capaz de prever
a morte do avô! E como aceitar, conforme se lê em (d), que sendo o cigarro uma irracionalidade
haja algum tipo de contraste em aplaudi-lo?
Os três exemplos seguintes revelam deslizes no uso do
pronome relativo, que diferentemente das conjunções e preposições promove a
coesão por referência, e não por sequenciação (o relativo representa semanticamente
um termo da oração anterior).
O emprego do chamado relativo universal, em (e), confirma a tendência que se observa
hoje de evitar o “cujo”. Pareceu difícil ao aluno reconhecer “conceito” como um
núcleo modificado pelo adjunto adnominal “uma (das práticas)” e iniciar a
oração por “cujo conceito”.
No exemplo (f) o estudante faz
anteceder ao relativo uma preposição inadequada à regência do verbo, quando bem
poderia tê-la trocado pelo conectivo correto, que ele usa no fim da frase:
“...é uma etapa da vida por que
todos passam.” Também por uma falha de regência quebra-se a coesão no último
exemplo. O verbo “aprender”, bitransitivo no contexto, rege seu complemento
indireto com a preposição “com”, e não “em” (o aluno aprendeu com o seu tio, não no seu tio). Pode ter concorrido para a confusão a presença do
adjunto adverbial de lugar; afinal de contas, foi em Areia que ele recebeu do parente as primeiras noções de latim.
São muitos os casos de ruptura da coesão
devido ao uso errôneo dos conectivos. Terminamos com esta curiosa passagem, em
que a conjunção e a preposição agrupadas têm sentidos opostos -- “até” indica
limite, “enquanto” indica duração: “Os famosos
terão que lidar
com os fotógrafos
das revistas de fofoca
até enquanto
durarem suas carreiras
artísticas”. Associar os dois torna o enunciado incoerente. Ou se suprime o
“até”, ou se mantém esse conectivo com a devida alteração do verbo (“até acabarem suas carreiras artísticas”).
II - Cruzamento de estruturas sintáticas
É comum o aluno juntar duas estruturas que
individualmente fazem sentido, mas associadas truncam o enunciado. Isso ocorre,
por exemplo, na passagem abaixo:
“Segundo
o pesquisador britânico Richard Lynn, em entrevista a Época, ele afirma que os ateus são mais
inteligentes do que os religiosos.”
A referência inicial a “Richard Lynn” já
diz que ele é o autor da afirmação que vem depois. Não há então necessidade de
repetir o pronome e o verbo dicendi
(“ele afirma”). O aluno parece que
esqueceu a preposição com que iniciou a frase e acabou dando-lhe o aspecto de um anacoluto. Deveria
ter optado por uma destas construções:
1 - “Segundo o pesquisador britânico Richard Lynn, em entrevista a
Época, os ateus são mais inteligentes do que os religiosos”;
2 - “O pesquisador britânico
Richard Lynn afirma, em entrevista a
Época, que os ateus são mais inteligentes do que os religiosos”.
Por vezes esse tipo de cruzamento é
efeito da associação de alguns verbos e nomes com outros de regências diferentes,
o que redunda no uso de conectivos indevidos. É o que ocorre em passagens como:
“A pessoa tranquila não está preocupada em vencer de ninguém ”
e “Discordo com suas idéias”.
O mau uso das preposições se explica,
respectivamente, pelo vínculo mental que se fez entre “vencer” e “ganhar”, que
rege complemento introduzido por “de”; e entre “discordar” e “não estar de
acordo”, em que o substantivo forma locução prepositiva mediante o acréscimo de
“com”.
III - Falta de correlação entre classes
morfológicas
A falha de coesão também ocorre
quando o aluno supõe que o termo de uma classe gramatical é capaz de
estabelecer uma correlação que, sintaticamente, só pode ocorrer com o de
outra. Por exemplo:
“A sociedade contemporânea apresenta mais
problemas emocionais
do que em outros
períodos de nossa
civilização .”
A preposição grifada, introdutora de um adjunto
adverbial de lugar, demonstra que o autor pretendeu comparar duas
circunstâncias, e não dois sujeitos. Ele não quis dizer que a sociedade
contemporânea apresenta mais problemas emocionais do que
outros períodos
(apresentaram). Pretendeu, isto sim, afirmar que os problemas emocionais na
contemporaneidade são mais frequentes do que
em períodos
anteriores -- o que faz diferença do ponto de vista sintático.
Pareceu-lhe que o adjetivo “contemporânea”, por seu
valor semântico, correlacionava-se adequadamente com o segmento de valor
adverbial. Evitaria a ruptura se tivesse escrito, por exemplo: “A sociedade apresenta mais
problemas emocionais
hoje
do que em outros
períodos de nossa
civilização .”
Na frase que segue, a ideia contida no substantivo
“conflitos” é retomada pela expressão vicária “faz isso”, que só poderia
substituir o conteúdo de um verbo: “Apesar dos conflitos constantes, eu sei que
minha mãe só faz isso para me ajudar
e quer o melhor de mim.”
A noção de “brigar”, latente em “conflitos”, levou à
falha coesiva. Explicitando-se a ação verbal, corrige-se a quebra: “Minha mãe briga constantemente comigo, mas sei
que ela só faz isso para me ajudar e
quer o melhor de mim.”
Podem-se incluir nesse grupo os casos em que a falta
de correlação se dá devido à confusão entre as subclasses que englobam agente e
paciente, ou vice-versa. Embora pertença à mesma classe morfológica do termo
anterior, o elemento que retoma esse termo difere do antecedente pelo maior
grau de concretude ou abstração que possui. Exemplos:
(h) “O consumismo é o ato
de comprar de forma
compulsiva, sem necessidade e consciência . Difere do consumidor, pois este
compra o que
é necessário para a sua vida .”
(i) “O professor , sinônimo
de educação , deveria ser
considerada uma das profissões mais
respeitadas e dignas.”
“Consumismo”, que é a prática de comprar em excesso,
não se correlaciona com “consumidor”, que é quem compra. Não haveria quebra se
o sujeito do primeiro período fosse o
substantivo “consumista” -- fazendo-se, é claro, as alterações no predicado. Ou
se, em vez de “consumidor”, aparecesse uma expressão como “mero consumo”.
Semelhantemente, em (i), “professor” deveria se
correlacionar com “profissionais”. “Profissões” só caberia se o sujeito do
primeiro parágrafo fosse, por exemplo, o substantivo “magistério”. A falta de
correlação provocou, inclusive, falha na concordância
da voz passiva (“deveria ser considerada”).
IV - Ondismo
Ondismo é o emprego despropositado do
advérbio relativo “onde”. O normal é usá-lo como introdutor de orações
adjetivas, mas a tendência de alguns alunos é fazer dele uma espécie de muleta,
um conectivo-ônibus, que liga qualquer oração. Os exemplos abaixo mostram isso:
(j) “Esses indivíduos possuem o humor instável, onde as pessoas ao seu redor
manipulam-nos facilmente.”
Aqui a presença do “onde”, que não retoma nenhum termo
anterior, tende a mascarar a relação existente entre as orações (que é de causa
e conseqüência). Em vez de “onde”, caberia “por isso” ou conectivo
equivalente.
(l) “O bate-papo
da internet está assassinando a língua
portuguesa, onde é utilizado apenas
por pessoas
que têm base
escolar ”.
A que antecedente se refere o “onde”
nessa passagem? Na cabeça do aluno, à internet, que seria o lugar onde ocorre o
bate-papo que está assassinando a nossa língua. Estranho é que participem do
chat apenas as pessoas “que têm base escolar”. Que fariam com a flor do Lácio
as que não a têm?
(m) “De tudo
que meu avô me ensinou, essa foi a maior lição , onde a alegria transforma o impossível em possível.”
Esse é mais um exemplo que confirma a importância da função
coesiva para a leitura. O uso inapropriado do “onde” dificulta a percepção do
que o avô ensinou. Tão simples dizer que sua maior lição foi “que a alegria transforma o impossível em
possível”.
Os problemas apontados refletem um despreparo que não
é apenas de natureza gramatical. Ninguém decora conectivos para aplicá-los bem,
pelo contrário: aplica-os bem quando é capaz de perceber as relações que eles
estabelecem entre as ideias.
Infelizmente boa parte dos alunos não é capaz de estabelecer
essas relações e usa os elementos coesivos apenas por um imperativo escolar.
Escreve o que lhe vem à cabeça e, como diz Alcir Pécora, “desliga o sentido do
relator do sentido da relação” (1999, p. 77). Com isso, revela-se incapaz de
conferir aos componentes do discurso nexo e coerência. Cabe à escola trabalhar essas
deficiências enfatizando a leitura. Só aprendendo a ler, o estudante perceberá
a natureza e o sentido dos enlaces que se estabelecem entre as palavras --
condição primeira para produzir com eficiência um texto.
Bibliografia
ANTUNES,
Irandé. Lutar com palavras; coesão e coerência. São Paulo: Parábola
Editorial, 2005.
COSTA
VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes,
2006.
PÉCORA,
Alcir. Problemas de redação. São Paulo: Martins Fontes, 1999.