quarta-feira, 1 de julho de 2020

Problemas de coesão em redações de vestibulandos


     
       A coesão é um dos principais requisitos para um agrupamento de palavras constituir um texto, pois promove a articulação dos elementos que o compõem. É o arcabouço formal de que deriva a coerência, e se constrói “através de mecanismos gramaticais e lexicais” (Costa Val, 2006, p. 6). Se os componentes linguísticos não se articulam por meio de tais mecanismos, tem-se um ajuntamento de palavras incapaz de comunicar a intenção de quem escreve.    
        As falhas coesivas são comuns em redações de vestibulandos. Ultrapassam em quantidade os deslizes decorrentes do uso inadequado das palavras. Envolvem, além do plano lexical, aspectos morfológicos e sintáticos, comprometendo a estruturação do pensamento. Também comprometem o sentido, pois é a continuidade promovida pela coesão que assegura a inteireza semântica do texto. Segundo Irandé Antunes, “a continuidade que se instaura pela coesão é, fundamentalmente, uma continuidade semântica” (2005, p. 50).  
         O assunto é objeto de uma diversificada teoria, que não cabe discutir aqui. Nosso propósito é comentar algumas falhas nesse importante fator de textualidade a partir de material produzido por nossos alunos. Elas, grosso modo, decorrem do uso inadequado dos conectivos, do cruzamento de estruturas sintáticas e da falta de correlação entre classes morfológicas. A esse conjunto soma-se o emprego abusivo do advérbio relativo “onde” (o chamado “ondismo”), que preferimos manter num grupo à parte. Vejamos alguns casos que exemplificam cada uma dessas possibilidades.
  
 I - Uso inadequado dos conectivos

           Os conectivos são responsáveis pela articulação lógico-sintática de termos simples e orações. A falha no seu emprego gera incoerência e obviamente compromete a unidade textual. Alguns exemplos:    
          
           (a) “Como os adolescentes têm o organismo menos resistente, por isso podem virar dependentes logo cedo.”
           (b) “O avanço tecnológico, além de suas vantagens e comodidades, traz preocupação a todos nós.”
          (c) “Não queria deixar vovó sozinha a tão pouco tempo da morte do meu avô.”
          (d) “O cigarro é uma irracionalidade, mas não podemos aplaudi-lo”.
          (e) “Uma das práticas que até agora não foi elaborado o conceito é a do ‘ficar’”.
          (f) “O sofrimento é uma etapa da vida em que todos passam por ela.” 
          (g) “Perdi meu pai e fui morar com meu tio em Areia; ele era um sacerdote, no qual aprendi as minhas primeiras noções de latim.”
Em (a), o uso simultâneo da conjunção causal e da consecutiva mostra que o aluno foi incapaz de perceber que as circunstâncias por elas indicadas se expressam com a presença de apenas um dos conectivos. A indefinição quanto à oração principal não gera propriamente incoerência, mas dificulta a apreensão da mensagem.
           Incoerência ocorre nas três passagens seguintes. Em (b), trocou-se um conectivo concessivo (apesar de) por um aditivo (além de). O uso de preposição em lugar de verbo, em (c), transforma passado em futuro e dá a impressão de que o autor da frase foi capaz de prever a morte do avô! E como aceitar, conforme se lê em (d), que sendo o cigarro uma irracionalidade haja algum tipo de contraste em aplaudi-lo?
Os três exemplos seguintes revelam deslizes no uso do pronome relativo, que diferentemente das conjunções e preposições promove a coesão por referência, e não por sequenciação (o relativo representa semanticamente um termo da oração anterior).
O emprego do chamado relativo universal, em (e), confirma a tendência que se observa hoje de evitar o “cujo”. Pareceu difícil ao aluno reconhecer “conceito” como um núcleo modificado pelo adjunto adnominal “uma (das práticas)” e iniciar a oração por “cujo conceito”.
           No exemplo (f) o estudante faz anteceder ao relativo uma preposição inadequada à regência do verbo, quando bem poderia tê-la trocado pelo conectivo correto, que ele usa no fim da frase: “...é uma etapa da vida por que todos passam.” Também por uma falha de regência quebra-se a coesão no último exemplo. O verbo “aprender”, bitransitivo no contexto, rege seu complemento indireto com a preposição “com”, e não “em” (o aluno aprendeu com o seu tio, não no seu tio). Pode ter concorrido para a confusão a presença do adjunto adverbial de lugar; afinal de contas, foi em Areia que ele recebeu do parente as primeiras noções de latim.
           São muitos os casos de ruptura da coesão devido ao uso errôneo dos conectivos. Terminamos com esta curiosa passagem, em que a conjunção e a preposição agrupadas têm sentidos opostos -- “até” indica limite, “enquanto” indica duração: “Os famosos terão que lidar com os fotógrafos das revistas de fofoca até enquanto durarem suas carreiras artísticas”. Associar os dois torna o enunciado incoerente. Ou se suprime o “até”, ou se mantém esse conectivo com a devida alteração do verbo (“até acabarem suas carreiras artísticas”).

            II - Cruzamento de estruturas sintáticas

É comum o aluno juntar duas estruturas que individualmente fazem sentido, mas associadas truncam o enunciado. Isso ocorre, por exemplo, na passagem abaixo:
      
          Segundo o pesquisador britânico Richard Lynn, em entrevista a Época, ele afirma que os ateus são mais inteligentes do que os religiosos.”
         A referência inicial a “Richard Lynn” já diz que ele é o autor da afirmação que vem depois. Não há então necessidade de repetir o pronome e o verbo dicendi (“ele afirma”).  O aluno parece que esqueceu a preposição com que iniciou a frase e acabou  dando-lhe o aspecto de um anacoluto. Deveria ter optado por uma destas construções:  
         1 - “Segundo o pesquisador britânico Richard Lynn, em entrevista a Época, os ateus são mais inteligentes do que os religiosos”;
            2 - “O pesquisador britânico Richard Lynn afirma, em entrevista a Época, que os ateus são mais inteligentes do que os religiosos”.

           Por vezes esse tipo de cruzamento é efeito da associação de alguns verbos e nomes com outros de regências diferentes, o que redunda no uso de conectivos indevidos. É o que ocorre em passagens como: “A pessoa tranquila não está preocupada em vencer de ninguém” e “Discordo com suas idéias”.
          O mau uso das preposições se explica, respectivamente, pelo vínculo mental que se fez entre “vencer” e “ganhar”, que rege complemento introduzido por “de”; e entre “discordar” e “não estar de acordo”, em que o substantivo forma locução prepositiva mediante o acréscimo de “com”.

    III - Falta de correlação entre classes morfológicas     

            A falha de coesão também ocorre quando o aluno supõe que o termo de uma classe gramatical é capaz de estabelecer uma correlação que, sintaticamente, só pode ocorrer com o de outra.  Por exemplo:
 “A sociedade contemporânea apresenta mais problemas emocionais do que em outros períodos de nossa civilização.”
A preposição grifada, introdutora de um adjunto adverbial de lugar, demonstra que o autor pretendeu comparar duas circunstâncias, e não dois sujeitos. Ele não quis dizer que a sociedade contemporânea apresenta mais problemas emocionais do que outros períodos (apresentaram). Pretendeu, isto sim, afirmar que os problemas emocionais na contemporaneidade são mais frequentes do que em períodos anteriores -- o que faz diferença do ponto de vista sintático.
Pareceu-lhe que o adjetivo “contemporânea”, por seu valor semântico, correlacionava-se adequadamente com o segmento de valor adverbial. Evitaria a ruptura se tivesse escrito, por exemplo: “A sociedade apresenta mais problemas emocionais hoje do que em outros períodos de nossa civilização.”
Na frase que segue, a ideia contida no substantivo “conflitos” é retomada pela expressão vicária “faz isso”, que só poderia substituir o conteúdo de um verbo: “Apesar dos conflitos constantes, eu sei que minha mãe só faz isso para me ajudar e quer o melhor de mim.”
A noção de “brigar”, latente em “conflitos”, levou à falha coesiva. Explicitando-se a ação verbal, corrige-se a quebra: “Minha mãe briga constantemente comigo, mas sei que ela só faz isso para me ajudar e quer o melhor de mim.”
Podem-se incluir nesse grupo os casos em que a falta de correlação se dá devido à confusão entre as subclasses que englobam agente e paciente, ou vice-versa. Embora pertença à mesma classe morfológica do termo anterior, o elemento que retoma esse termo difere do antecedente pelo maior grau de concretude ou abstração que possui. Exemplos:

(h) “O consumismo é o ato de comprar de forma compulsiva, sem necessidade e consciência. Difere do consumidor, pois este compra o que é necessário para a sua vida.”
(i) “O professor, sinônimo de educação, deveria ser considerada uma das profissões mais respeitadas e dignas.”

“Consumismo”, que é a prática de comprar em excesso, não se correlaciona com “consumidor”, que é quem compra. Não haveria quebra se o sujeito do primeiro período   fosse o substantivo “consumista” -- fazendo-se, é claro, as alterações no predicado. Ou se, em vez de “consumidor”, aparecesse uma expressão como “mero consumo”.
Semelhantemente, em (i), “professor” deveria se correlacionar com “profissionais”. “Profissões” só caberia se o sujeito do primeiro parágrafo fosse, por exemplo, o substantivo “magistério”. A falta de correlação provocou, inclusive, falha na concordância da voz passiva (“deveria ser considerada”).

         IV - Ondismo 

         Ondismo é o emprego despropositado do advérbio relativo “onde”. O normal é usá-lo como introdutor de orações adjetivas, mas a tendência de alguns alunos é fazer dele uma espécie de muleta, um conectivo-ônibus, que liga qualquer oração. Os exemplos abaixo mostram isso:  

(j) “Esses indivíduos possuem o humor instável, onde as pessoas ao seu redor manipulam-nos facilmente.”
Aqui a presença do “onde”, que não retoma nenhum termo anterior, tende a mascarar a relação existente entre as orações (que é de causa e conseqüência). Em vez de “onde”, caberia “por isso” ou conectivo equivalente.   
            (l) “O bate-papo da internet está assassinando a língua portuguesa, onde é utilizado apenas por pessoas que têm base escolar”.
            A que antecedente se refere o “onde” nessa passagem? Na cabeça do aluno, à internet, que seria o lugar onde ocorre o bate-papo que está assassinando a nossa língua. Estranho é que participem do chat apenas as pessoas “que têm base escolar”. Que fariam com a flor do Lácio as que não a têm?
          (m) “De tudo que meu avô me ensinou, essa foi a maior lição, onde a alegria transforma o impossível em possível.”
Esse é mais um exemplo que confirma a importância da função coesiva para a leitura. O uso inapropriado do “onde” dificulta a percepção do que o avô ensinou. Tão simples dizer que sua maior lição foi “que a alegria transforma o impossível em possível”.

Os problemas apontados refletem um despreparo que não é apenas de natureza gramatical. Ninguém decora conectivos para aplicá-los bem, pelo contrário: aplica-os bem quando é capaz de perceber as relações que eles estabelecem entre as ideias.
Infelizmente boa parte dos alunos não é capaz de estabelecer essas relações e usa os elementos coesivos apenas por um imperativo escolar. Escreve o que lhe vem à cabeça e, como diz Alcir Pécora, “desliga o sentido do relator do sentido da relação” (1999, p. 77). Com isso, revela-se incapaz de conferir aos componentes do discurso nexo e coerência. Cabe à escola trabalhar essas deficiências enfatizando a leitura. Só aprendendo a ler, o estudante perceberá a natureza e o sentido dos enlaces que se estabelecem entre as palavras -- condição primeira para produzir com eficiência um texto.

                                                 Bibliografia

ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras; coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. 
COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. São Paulo: Martins Fontes, 1999.