Dizem que a
paixão cega, por isso os apaixonados não percebem os defeitos dos parceiros.
Uma tradução aproximada dessa verdade se encontra no velho ditado: “Quem ama o
feio, bonito lhe parece”. Os apaixonados são movidos por razões que só Freud
explica – e aqui não me limito a repetir um clichê. Para o criador da Psicanálise
nossa atração pelo objeto amoroso decorre de nebulosas determinações
inconscientes, que remontam às vivências infantis.
O amor paixão
(pois há o amor amor, que não se enquadra no modelo a que me refiro) não passa
pelo teste de realidade, pois se alimenta da fantasia. Alguém já escreveu que a
gente se apaixona por metáfora, ou seja, pela semelhança que encontra entre o
ser real e uma imagem dele moldada em nosso inconsciente. Nunca são a mesma pessoa,
e uma delas (o ser real) pode até desmerecer a outra. Eis por que a paixão tem
um tempo, um prazo de validade; vai sucumbindo à proporção que do ser
idealizado emergem os traços reais.
É mais ou menos
como naquele truque de espelhos em que a mulher se metamorfoseia em macaco.
Lembro-me de um número desse tipo na Festa das Neves. Aos poucos Monga, a Bela,
vai se transformando num símio feio e agressivo. Só que, ao contrário do que
ocorre na encenação, na vida a mudança não tem volta. O jeito então é domar o
macaco, habituar-se com sua feiura, aprender a conviver com ele. Essas são
artes do amor.
O fato é que
ninguém se apaixona movido pela razão. Por isso achei curiosa esta passagem
publicada num site de adolescentes:
“Sempre me correspondi com meus amigos via e-mail e acabei conhecendo outras pessoas por meio da rede. Cheguei a namorar um dos caras com os quais eu conversava. Mas fui percebendo, com o tempo, que ele escrevia muito mal. Uma vez cheguei a lhe devolver um e-mail com as correções. Ele ficou uma fera. Mas não dava para admitir coisas como ‘ficou para traz’, ou ‘voçê’, ou ‘vamos comê’. O namoro perdeu um pouco do brilho. Se antes de iniciar o relacionamento eu soubesse que ele escrevia assim, provavelmente não teria nem começado.”
A garota que
escreveu isso é uma exceção, claro. Para ela o feio linguístico não parece
bonito; pelo contrário, é um defeito que pode tornar inviável a aproximação com
um eventual pretendente. Samara (o nome dela) não está disposta a se relacionar
com quem desconhece a língua a ponto de cometer erros grosseiros de ortografia.
Quer alguém que saiba um mínimo de gramática.
Dirão os
românticos que ela só pensa assim porque nunca amou de verdade. Pode ser. Mas o
fato de condicionar o namoro a um mínimo de conhecimento linguístico revela um
espírito arguto e cuidadoso. Samara deve saber que a ligação amorosa começa com
o corpo mas se alimenta mesmo é das ações e das palavras, e que não dá para viver
com quem não sabe se expressar.
Ela intuiu uma
verdade que a gente confirma lendo as memórias de conquistadores célebres, como
Casanova. Eles foram sobretudo hábeis usuários da língua. Podiam até não ser
sinceros, mas sabiam que no jogo da conquista a lábia conta mais do que os
lábios. E que no discurso reside talvez a mais legítima expressão espiritual do
amor. Daí os bilhetes, as cartas, os registros na internet, que buscam testemunhar
o que os apaixonados sentem. Imaginem esses textos escritos num português indigente
como o usado pelo “cara” com quem Samara se correspondia!
Barthes escreveu que só tem sentido falar “Eu te amo” uma vez. Depois disso, a declaração vira banalidade. Para que o sentimento não morra, deve se alimentar não apenas de ações como também de um discurso que traduza o universo espiritual e, sobretudo, os interesses comuns aos dois. O amor não acaba quando morre o desejo. Acaba quando os amantes não têm mais o que dizer. Ou têm, mas não sabem como fazê-lo.