terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Armadilhas do gerúndio


           O abuso ou o emprego pouco vernáculo do gerúndio, também conhecido por endorreia, é mal antigo em nossa língua. Rodrigues Lapa dá como exemplo dessa prática o uso do gerúndio com o valor de atributo, em frases do tipo: “Recebeu uma caixa contendo (que continha) roupas”. Mas ele não se mostra satisfeito com a correção proposta pelos puristas; vê em “que continha” uma construção artificial, “estilisticamente inferior”, e pondera que “o uso do gerúndio é em certos casos preferível à oração relativa”.

Atualmente a rejeição ao gerúndio deixou de ter por foco o seu emprego como atributo para se concentrar em outro tipo de construção – aquele em que a forma nominal vem antecedida pela dupla “vou estar”. O modismo parece ter se iniciado com os operadores de telemarketing e daí migrado para outras faixas da população.

Esse tipo de construção é de fato ruim e deve ser combatido, pois soa pernóstico em nossa língua o uso de “vou estar” em lugar de “estarei” – um auxiliar determinativo que remete a ação expressa pelo verbo principal ao futuro. Tampouco tem cabimento o emprego do gerúndio se não há ideia de duração ou simultaneidade.       

Quando as ações são simultâneas, o uso da forma nominal antecedida de um auxiliar no futuro é pertinente. Numa frase como “Amanhã, enquanto você estiver no cinema, eu estarei estudando”, o emissor dá a entender que o estudo vai ocorrer ao mesmo tempo que o interlocutor se encontrar na sala de projeção. Caso não haja a noção de simultaneidade, construções como “estarei estudando” e semelhantes podem ser substituídas com vantagem por “irei estudar”, ou mesmo “estudarei”.

Há casos em que o problema com o uso do gerúndio é mais grave. Vai além de clichês ou modismos como os comentados acima – que prejudicam sobretudo o estilo – e afeta os mecanismos estruturais da língua. Isso ocorre, por exemplo, quando o gerúndio introduz uma nova oração.

O desejável, nesse caso, é que o sujeito da oração gerundial seja o mesmo da oração anterior. Numa frase como “Lourenço deixou tarde a casa do pai, seguindo por uma rua escura”, Lourenço é o sujeito tanto do verbo “deixar” quando do gerúndio “seguindo”. Nas situações em que os sujeitos são diferentes, e o emissor não é capaz de explicitar esse fato, o enunciado se torna incoerente.      

Um exemplo disso aparece neste exemplo (retirado, como os que seguem, de redações dos nossos alunos): “A saúde dos fumantes e dos que estão ao seu redor fica debilitada, podendo causar, entre outras doenças, câncer de pulmão.” Pela forma como se estruturou o período, parece que o sujeito de “podendo causar” tem como núcleo “saúde”. Essa interpretação obviamente não tem sentido, pois a causa do câncer de pulmão e de outras doenças não pode ser a saúde dos fumantes e dos que os cercam. O sujeito da locução com o gerúndio é o conteúdo de toda a oração que o antecede, o qual pode ser resumido num anafórico (“isso”, iniciando um novo período; ou “o que”, após uma vírgula). Por exemplo: “A saúde dos fumantes e dos que estão ao seu redor fica debilitada. Isso pode causar, entre outras doenças, câncer de pulmão.”

Outro exemplo de quebra estrutural ocorre nesta passagem: “Os professores não possuem mais a fama de carrascos, facilitando a relação entre eles e os alunos”. Pela forma como o aluno construiu a frase, parece que o sujeito de facilitando é “os professores” e não todo o conteúdo da primeira oração. Ora, é o fato de os professores não mais terem a fama de carrascos que torna fácil a relação entre eles e os alunos. O uso de “o que” daria clareza ao enunciado: “Os professores não possuem mais a fama de carrascos, o que facilita a relação entre eles e os alunos”.

Há casos em que o estudante identifica corretamente os dois sujeitos, mas compromete a legibilidade devido a falha na pontuação: “O ideal é não adotar essa postura de subordinação conciliando o bem-estar com a independência diante dos professores.” Nessa passagem, o sujeito de “conciliando” é o mesmo do infinitivo “adotar”. A oração reduzida equivale a uma oração coordenada (e conciliar), no entanto a ausência da vírgula antes do gerúndio dificulta ao leitor a percepção disso.  

Outro problema grave é a acumulação de gerúndios, que produz períodos longos e mal concatenados. O aluno, às vezes por comodismo, enfileira as orações sem nenhuma preocupação com o nexo que deve existir entre elas. O resultado são períodos confusos e maçantes como o seguinte: “Em regiões pobres as pessoas assistem mais TV do que leem, podendo-se observar que os níveis de desenvolvimento na educação e na cultura não atingem valores significativos, acarretando graves consequências sociais.”

A substituição dos gerúndios por formas desenvolvidas estabelece o nexo entre as orações: “Em regiões pobres as pessoas assistem mais TV do que leem. Pode-se observar que nelas os níveis de desenvolvimento na educação e na cultura não atingem valores significativos, o que acarreta graves consequências sociais.”

Por fim, vale mencionar outra falha também frequente em redações: a presença do gerúndio introduzindo um fragmento de frase. Isso ocorre quando o emissor pretende com a forma nominal complementar um período, mas põe antes dela um ponto. Assim: “Com mais investimentos em educação, o País vai crescer. Diminuindo, assim, o complexo de vira-latas apontado por Nelson Rodrigues.” A oração introduzida pelo verbo “diminuir” parece iniciar um novo período, e não rematar o período anterior. Constitui um fragmento, pois a ela não se acrescenta oração principal. Um dos meios de resolver o problema é transformar o gerúndio em forma desenvolvida: “Com mais investimentos em educação, o País vai crescer. Diminuirá, assim, o complexo de vira-latas apontado por Nelson Rodrigues.”

O emprego abusivo do gerúndio constitui um vício de linguagem. Denota comodismo por parte do emissor, que prefere agrupar sem critério essa forma nominal a proceder à devida flexão do verbo. O leitor estará longe de lhe agradecer por isso.