quinta-feira, 7 de novembro de 2019

A redação do Enem 2019 em tela


O tema da redação do Enem deste ano não deixou de causar surpresa. Como ocorreu em 2017, quando foram abordados os desafios para a formação educacional dos surdos, em 2019 a proposta se desmembrou num tópico geral (a arte) e em outro específico (o cinema). Muitos professores que em 2017 trabalharam o tema da inclusão certamente não se detiveram nas dificuldades da comunidade surda. Da mesma forma, o tema da democratização da arte (e, por extensão, da cultura) deve ter ocorrido a muitos, que dificilmente o terão vinculado ao cinema.  
Ao priorizar uma classe, ou um setor, a banca visa não só aprofundar o recorte temático (impedindo que o candidato generalize e fique no assunto), como também trazer um componente de surpresa que aumente a dificuldade no desenvolvimento do tema. Essa não deixa de ser uma forma de identificar os bons candidatos, ou seja, aqueles que se mostrem capazes de extrair dos textos motivadores informações que lhes permitam produzir uma redação convincente.  
Os textos que a banca selecionou para compor a coletânea são abrangentes e informativos, mas sobretudo o III e o IV estabelecem um vínculo com a palavra-chave: democratização. A banca não queria que o candidato abordasse o cinema como arte inovadora (Texto I) ou como um meio de transfiguração da experiência pessoal (Texto II). Queria que o fizesse levando em conta as novas possibilidades (ou não) de acesso às películas. É nos textos III e IV que efetivamente se problematiza o tema, e deles é que podiam surgir as propostas de intervenção (embora, claro, isso dependesse muito do posicionamento assumido pelo aluno).         
Grosso modo, pode-se dizer que os dados e percentagens apresentados no texto III problematizam o tema em função de um desafio para a classe média: como fazer as pessoas desse segmento social sair de casa para ir ao cinema? Isso faz pensar nas estratégias adotadas pelas companhias exibidoras para encher as salas (combos, poltronas superconfortáveis, projeções em 3 D). Já o texto IV contempla os estratos sociais de baixa renda, mostrando com dados e cifras que o cinema tem se tornado um privilégio dos centros financeiramente abonados.  O interior, por não ter grandes shoppings, não conta com salas de exibição (apesar de servir de cenário para filmes como “Bacuaru”, que ganhou vários prêmios no exterior; isso não deixa de ser uma irônica contradição).
   A quem não se deteve nos pontos que venho mencionando, lembro que os textos motivadores (como o nome diz) “motivam” porém não esgotam. Uma boa redação se mede pela consistência e a coerência, e não pelo simples fato de contemplar um aspecto da coletânea. A ideia de democratizar, tornar público, é muito ampla. Envolve por exemplo o Ministério da Cultura, que poderia entre outras medidas buscar atender a uma antiga reivindicação da comunidade surda e inserir legendas nos filmes nacionais (num tempo em que se fala tanto em inclusão, ela tem sido injustamente privada de conhecer as realizações cinematográficas do seu país). Envolve também os clássicos agentes “escola” e “família”, que podem agir como promotores (ou ao menos encorajadores) do acesso às produções cinematográficas.
À escola caberia, por exemplo, incentivar a criação de cineclubes, realizar debates sobre filmes importantes ou promover seminários que tratassem da relação entre o cinema e as outras artes (sobretudo a literatura). Já a família poderia estimular a ida às salas de cinema como complemento ao processo educativo, que não pode prescindir da formação cultural. Eu, por exemplo, ainda hoje sou grato ao meu pai pela mesadinha para assistir às sessões do cinema de arte no Cine Municipal às quintas-feiras. Graças a essa prática, afeiçoei-me a nomes como Fellini, Antonioni, Buñuel, Godard e tantos outros.
 Por falar em Godard, é dele a famosa definição do cinema como “a verdade 24 vezes por segundo” (referência ao número de vezes em que os fotogramas giram no projetor para dar a impressão de movimento). O cinema seria uma ilusão que amplifica a verdade. De tão boa, a citação do francês bem que poderia servir de remate a um texto sobre o tema. Vou aproveitar a dica e fechar com ela este artigo.