sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Sobre o paralelismo semântico

Um leitor me escreveu pedindo a análise da frase: “Fez duas cirurgias: uma em São Paulo, outra no ouvido”. Ele diz não ter ficado satisfeito com a explicação de um professor: “A aula (dele) envolvia advérbios, não a frase em si”, explica.
Ocorre na frase uma quebra de paralelismo semântico. Essa quebra consiste em coordenar termos de diferentes campos lexicais. A referência a São Paulo faz esperar que se mencione outro lugar, e não o órgão operado.
      A quebra do paralelismo semântico caracteriza a chamada enumeração caótica, que tem muitas vezes efeito humorístico. Um exemplo desse tipo de quebra é esta famosa passagem de Machado de Assis: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de reis”.
Espera-se que, após a conjunção “e”, complemente-se a referência temporal em semanas ou dias; em vez disso o narrador menciona uma quantia em dinheiro, o que à primeira vista parece um despropósito. Logo se percebe o alcance estilístico da ruptura; a menção ao dinheiro sugere que Marcela ficou com Brás Cubas por interesse, e não por amor. O resultado é bem melhor do que se Machado simplesmente escrevesse: “Marcela amou-me durante seis meses. Nesse período, levou-me onze contos de réis.” Aqui temos apenas a informação, sem a surpresa e a graça promovidas pelo estilo.   
Efeito semelhante ao de Machado obtém Drummond quando escreve, visando menos ao humor do que à tradução do desalento existencial: “Perdi o bonde e a esperança...”. A coordenação entre um termo do campo lexical dos transportes e outro do campo dos sentimentos promove uma ruptura que amplia o alcance da perda. Não se trata apenas da fortuita perda de um meio de transporte; o que se perdeu foi algo que assegura o percurso da própria vida. Sem esperança não se vai a lugar nenhum.  
         Não é qualquer ruptura semântica que promove o efeito estilístico. Muitas vezes a quebra não passa de uma falha estrutural. A frase enviada pelo leitor, por exemplo, é mais lacunosa do que caótica (no sentido que comentamos aqui). O destinatário fica sem saber qual cirurgia foi feita em são Paulo e onde ocorreu a cirurgia que se fez no ouvido. Não há suplemento, mas carência de informação. Tampouco transparece alguma intenção crítica, ou jocosa, promovida pelo jogo dos significantes.
          Outro seria o efeito se o autor tivesse escrito, por exemplo: “O cirurgião cortou-me o ouvido e o bolso”, sugerindo que o médico cobrou caro pela operação. O emprego metonímico de “bolso” (no lugar de dinheiro) quebraria o paralelismo mas encaminharia o leitor para um novo plano interpretativo, enriquecendo semanticamente a informação. 

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Refazendo parágrafos

         A refeitura é imprescindível para melhorar a capacidade redacional. Ao refazer, a partir das correções do professor, o aluno vai tomando consciência das falhas que cometeu e tende a não repeti-las. O ideal é reescrever todo o texto, mas na impossibilidade de fazer isso pode-se reformular parte dele. De preferência parágrafos, que se estruturam em torno de uma ideia básica (tópico frasal) e têm unidade de sentido.
         Na refeitura corrigem-se problemas lógicos (como a falta de unidade), semânticos (como o preciosismo) ou estruturais (como a ausência de paralelismo). Seguem exemplos de cada caso, todos extraídos de redações:

1)  “A naturalidade humana vem se perdendo. Antigamente, era comum a existência de pessoas talentosas, que colocavam em prática seus dons e conhecimentos. Porém, atualmente, poucos fazem algo novo, diferente. Esse fato é consequência do avanço tecnológico.”
         O tópico frasal se refere à “naturalidade”, mas o desenvolvimento se ajusta melhor ao conceito de criatividade. Além dessa troca, que deixa o tópico desconectado do que vem depois, o aluno não explica por que o avanço da tecnologia teria tornado o homem menos criativo – hipótese no mínimo polêmica.
        Na refeitura se respeitou a discutível tese do estudante e se procurou, dentro do possível, suprir as lacunas da argumentação:
           “A criatividade humana vem se perdendo. Antigamente, era comum a existência de pessoas talentosas, que colocavam em prática seus dons e conhecimentos. Porém, atualmente, poucos fazem algo novo, diferente. Isso é consequência do avanço tecnológico, pois as máquinas vêm tomando o lugar do homem em tarefas que exigem maior desempenho intelectual.”  
2) “O trabalho na escola vem se reduzindo a meros interesses de resultados em vestibulares. Não há como negar a importância de resultados, qualquer que seja o âmbito tratado, mas muito melhor é unido aos resultados observar o corpo gerador dos mesmos. E qual esse corpo gerador senão aquele formado pelo conjunto dos seguintes valores: amor, respeito, justiça, paz, solidariedade? Para ultrapassar a superfície de meros resultados, o conceito escola ter impresso em suas entranhas os já mencionados valores.” 
         O parágrafo, como se vê nas partes em negrito, ressente-se do preciocismo (visível nas redundâncias e no empolamento das ideias, com vistas a sugerir uma falsa profundidade). Expressões como “qualquer que seja o âmbito tratado”, “corpo gerador dos mesmos”, “superfície de meros resultados” ou “ter impresso em suas entranhas” são excessivas e inapropriadas; terminam levando ao obscurecimento do sentido.
          O trabalho de refeitura consistiu basicamente em cortar os excessos e traduzir com rigor o pensamento do aluno:
         “O trabalho na escola vem se resumindo ao interesse por resultados no vestibular. Não há como negar a importância desses resultados, mas o importante é unir a eles a transmissão dos valores que os geram: amor, respeito, justiça, paz, solidariedade. A escola deve se comprometer sobretudo com esses valores.”

 3) “A mídia age nos âmbitos político, econômico e social. As consequências são: para o primeiro caso, a formação de cidadãos alienados e manipulados; para o segundo caso, impedir que o país adote as medidas econômicas realmente necessárias para o seu crescimento; para o terceiro caso, prejudica a difusão da diversidade cultural.”
O estudante apresenta, em processo coordenativo, as consequências da ação da mídia em três âmbitos. Era preciso que esses âmbitos estivessem estruturados da mesma forma, o que não ocorreu; a sequência começa com o substantivo “formação” e se completa com os verbos “impedir” e “prejudicar”, que aparecem em flexões diferentes (infinitivo e presente do indicativo).  
Na refeitura, procurou-se estabelecer o paralelismo tomando como referência o substantivo ou cada um dos verbos. O importante era que houvesse simetria estrutural entre os termos coordenados. Eis as três versões a que se chegou:   
 - “A mídia age nos âmbitos político, econômico e social. As consequências são, no primeiro, a formação de cidadãos alienados e manipulados; no segundo, o impedimento a que o país adote as medidas econômicas realmente necessárias para o seu crescimento; e no terceiro, o prejuízo para a difusão da diversidade cultural.”
- “A mídia age nos âmbitos político, econômico e social. As consequências são, no primeiro, formar cidadãos alienados e manipulados; no segundo, impedir que o país adote as medidas econômicas realmente necessárias para o seu crescimento; e no terceiro, prejudicar a difusão da diversidade cultural.”
      - “A mídia age nos âmbitos político, econômico e social. No primeiro, forma cidadãos alienados e manipulados; no segundo, impede que o país adote as medidas econômicas realmente necessárias para o seu crescimento; e no terceiro, prejudica a difusão da diversidade cultural.”  

A boa escrita

     Você escreve certo ou escreve bem? Essa pergunta pode soar estranha, mas o fato é que nem sempre um texto correto é um texto bem escrito. Para chegar à correção, basta que se tenha o domínio das normas de gramática.
      o bem escrever pressupõe algo mais. Depende de consciência linguística. Quem a tem fica menos ligado nas regras do que no poder comunicativo e no valor expressivo das palavras.
     A consciência linguística está levando, por exemplo, à aposentadoria da mesóclise. Antigamente era sinal de distinção encher o texto de “far-lhe-ei”, “dir-te-ia”, “vê-lo-ás” e construções semelhantes. Jânio Quadros, que era professor de português, notabilizou-se por empregar o pronome no meio do verbo até em bilhetinhos para os assessores.
      Hoje se prefere dizerLhe farei uma visita” a “Far-lhe-ei uma visita”. A segunda construção soa pernóstica, pouco natural. A pronúncia retorcida das construções mesoclíticas não resistiu ao despojamento e ao dinamismo próprios da nossa época. Escrever bem hoje é valorizar as formas breves e simples, que atingem com mais eficiência o leitor.
    Não foi apenas a mesóclise que se ausentou do cardápio. No plano semântico, passou-se a valorizar as palavras de uso comum. “Propósitoem vez de “desiderato”; “destacado” no lugar de “conscípuo”; “desprezívelpreferencialmente a “despiciendo”.
    No domínio da sintaxe, períodos longos e invertidos deram lugar às orações absolutas e à ordem direta. Em vez de “Ontem, depois de horas de espera, quando ninguém mais achava que o roqueiro Z aparecesse, ele resolveu sair do hotel e dar autógrafos aos fãs” – prefere-se esta construção mais e simples e clara: “Ontem o roqueiro Z resolveu sair do hotel e dar autógrafos aos fãs. Isso depois de horas de espera, quando ninguém mais achava que ele aparecesse”.
       Escrever bem é pensar no leitor. Não é justo fazê-lo quebrar a cabeça com períodos quilométricos ou palavras cerebrinas. Por sinal, acabei de fazer isso ao usar o termo “cerebrinas”. O consolo é que ninguém perde nada indo ao dicionário. A simplificação da linguagem, própria dos tempos que correm, não nos deve levar a esquecer esse hábito salutar.

sábado, 19 de novembro de 2016

Modismos vocabulares

        Certas escolhas vocabulares dos alunos se explicam por modismo ou pelo aparente prestígio que conferem ao texto. Refletem a tendência a “escrever difícil”, que para alguns é sinônimo de escrever bem. O propósito de sofisticar a escrita termina levando à imprecisão ou mesmo à inadequação semântica.
         Um dos vocábulos de que os estudantes abusam é o pronome “algo”. Eis alguns exemplos retirados de redações:          
- “O racismo hoje é algo comum, encontrado até mesmo nas grandes metrópoles.”
- “A influência religiosa na cultura de um povo é algo percebido quando se olha para as diversas regiões do mundo.”
- “A cada dia a violência contra a mulher vem sendo algo difundido na mídia.”
- “A aceitação dos ateus no meio social é algo muito raro.”
- “Discriminar alguém pela cor, gênero ou nacionalidade passou a ser algo comum na sociedade.”
        Esse pronome nada acrescenta ao que é dito. O que ele faz é dar à frase um ar pomposo e um tango enigmático, que compromete a objetividade. 
       Outro modismo nas redações é o substantivo “problemática”. Segundo o dicionário, ele designa um conjunto de problemas ou questões associadas a determinado objeto ou ramo do conhecimento. Se há apenas um obstáculo, contratempo ou questão a ser resolvida, o correto é escrever mesmo “problema”. Não tem sentido falar em problemática da água, dos imigrantes, da violência urbana etc. Esses são... problemas, para os quais é preciso solução (e não solucionática, com dizia ironicamente Millôr).
      “Drástico” é outro vocábulo corriqueiro e nem sempre usado com precisão. Muitos o empregam com o sentido de terrível ou pernicioso, como nesta passagem: “As conseqüências do cigarro são drásticas e não prejudicam apenas os fumantes, mas quem convive com eles também.”
       O significado de drástico é “enérgico”, “radical”. A palavra designa “um purgante que produz evacuações intensas” e está bem empregada quando se aplica a medida, atitude, reação. É impróprio usá-la para falar de cena, episódio ou acontecimento. A propósito das manifestações de 2013, um aluno escreveu: “A ação da polícia trouxe consequências drásticas”. Ele talvez quisesse dizer “trágicas”, o que até faria sentido.  Não cabe é afirmar que as consequências são enérgicas.
          Outra impropriedade é o verbo “acessar” em frases do tipo: “A polícia conseguiu acessar o local 30 minutos após o crime.” Segundo o Houaiss, acessar é “obter acesso a informação, dados, processos, dispositivos etc.”. Se a ideia é a de ingresso em algum lugar, o melhor mesmo é escrever “ter acesso”. Retificando, então: “A polícia conseguiu ter acesso ao local 30 minutos após o crime”.
         Outro vocábulo que se emprega por moda, e nem sempre de maneira correta, é o adjetivo “assertivo” (derivado de asserção, afirmação). Nos textos motivacionais ele é muito usado para qualificar a postura de quem assume o que diz. Ser assertivo é ser positivo, franco; não titubear nem se esconder. A banalização do uso leva a construções como esta: “A redução da maioridade penal não seria a maneira mais assertiva, pois os delitos continuariam a existir.” O melhor para qualificar “maneira”, nesse contexto, seria um adjetivo como adequada, sensata ou eficaz.
         Abusa-se também da palavra “fato”, que é muitas vezes empregada quando não existe acontecimento algum. A passagem seguinte ilustra isso: “Discute-se o fato da redução da maioridade penal para punir esses indivíduos, entretanto, não é a medida correta.” Se está em discussão, a maioridade penal é ainda uma proposta. Está longe de representar um fato, que se define como “algo cuja existência pode ser constatada de modo indiscutível”
        “Corroborar” é outro vocábulo de uso frequentemente inadequado. Dois exemplos:
- “A construção da Usina hidrelétrica de Belo Monte tem o objetivo de distribuir energia para lugares distantes, corroborando para a diminuição de apagões elétricos.”
- “Férias e refeições em família corroboram para a aproximação com os pais.”
        A falha nesse caso é não apenas semântica, como também sintática. O verbo corroborar significa “confirmar”, “ratificar” – e não “concorrer”, como sugerem os exemplos.   Além disso “corroborar” é transitivo direto, ou seja, rege complemento sem preposição. A presença do conectivo é mais uma prova da confusão com o verbo concorrer, pois este, sim, determina antes do seu complemento a preposição “para” (A educação concorre para o desenvolvimento do país).
        Evitar os modismos leva ao rigor na expressão das ideias, que sem os excessos e estereótipos transparecem com clareza. É preciso então refletir antes de escolher um termo que está na moda. Além de soar cansativo, ele pode não se ajustar ao que o redator pretende dizer.

domingo, 6 de novembro de 2016

Fé na razão (a redação do Enem 2016)

Mais uma vez o tema de redação do Enem surpreende. “Caminhos para combater a intolerância religiosa no Brasil” não é bem o que os professores e os alunos esperavam. As apostas se concentravam em crise econômica, justiça com as próprias mãos, problemas de mobilidade urbana, políticas de educação inclusiva ou novo papel dos idosos numa sociedade da qual participam cada vez mais.
A surpresa, porém, não vai gerar protestos dos alunos. O tema escolhido permeia discussões que, de algum modo, fazem parte do seu cotidiano. Além do mais, correlaciona-se com outros frequentemente trabalhados em classe, como o do preconceito contra as minorias e o da aversão ao que é diferente. É dentro desse espectro de ódio e rejeição que se inclui a intolerância religiosa, e muitas das medidas apontadas para debelar o preconceito contra as diferenças servem para combatê-la (o que já é uma boa pista para as propostas de intervenção).
Os que criticarem o tema o farão pelo que presumivelmente há nele de subjetivo e, digamos, dogmático. Religião, afinal de contas, pertence ao foro íntimo de cada um. Essa crítica contudo não procede, pois a banca teve o cuidado de evitar qualquer discussão quanto a esse ponto ao reconhecer de antemão que a intolerância existe. Ou seja: o tema não é a intolerância (se há ou não), mas sim os meios de se opor a ela. Assim, os que professam seus diferentes credos não têm motivos para defendê-los por se sentirem rechaçados, ou mesmo discriminados, de modo que argumentar neste sentido seria afastar-se do tema.
A despeito do adjetivo “religiosa”, não existe no tema nenhuma conotação metafísica ou nenhum apelo a que o candidato defenda sua religião. Tampouco os que não creem estão convocados a explicar os motivos da descrença. O tema remete, na verdade, a valores racionais e éticos ao postular o respeito à igualdade e a crítica à discriminação. Ao mesmo tempo salvaguarda a laicidade do Estado, que como guardião constitucional deve defender o direito de todos a professar suas crenças.
 O candidato deve ter cuidado para não cair numa das armadilhas citadas acima e, com isso, afastar-se do foco temático. Como escapar disso? Primeiro, detendo-se nas causas da intolerância religiosa (históricas, sociais, intelectuais); não há dúvida de que as duas primeiras concorrem para que determinadas religiões, como as de origem africana, sejam discriminadas. Segundo, fazendo o que a banca pede, ou seja, indicando os caminhos para combater a intolerância. Eles passam, obviamente, pela atuação de instituições como a família e a escola, assim como pela ação rigorosa das instâncias responsáveis por punir os transgressores. 

sábado, 5 de novembro de 2016

Escrever é cortar

Um dos inimigos da boa redação é o excesso de palavras. Escrever demais tira o foco do que se quer comunicar e acaba irritando o leitor. Deve-se sempre enxugar o texto, pois os excessos acabam impedindo que transpareça o essencial.
Graciliano Ramos trata metaforicamente o processo de enxugamento numa das crônicas de “Linhas tortas”:
         "Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes.
“Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota.
“Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."
O autor de “São Bernardo” compara o ato de escrever ao ofício das lavadeiras de Alagoas, que dividem seu trabalho entre molhar e torcer. Elas devem secar muito a roupa a fim de que o tecido, livre da sujeira e da água que o ensopa, revele a natureza da textura e a nitidez das cores. O mesmo ocorre com os escritos, que no início vêm cheios de impurezas e só se aproximam da forma ideal à medida que são submetidos a “secagens” sucessivas.  
         A vantagem dos cortes evidencia-se em todo tipo de texto. Escrever demais tanto prejudica o estilo numa obra de ficção, quanto compromete o rigor das informações e do raciocínio numa redação escolar. É preciso despertar os alunos para isso, levando-os a perceber o que precisa ser cortado.
           Na amostragem abaixo aparecem alguns excessos encontrados em redações. Eles estão em negrito e devem ser retirados em prol da simplicidade e da clareza:
1 - A educação do Brasil vem passando por mudanças ao longo do tempo.
2 - O mercado do consumo nos oferece hoje uma grande variedade de produtos disponíveis à compra.
            3 - Esse processo de construção da educação deve ser feito minuciosamente e com muito cuidado, pois cada etapa deve estar totalmente garantida.
4 - Alguns concursos podem interpretar que o excesso de timidez de um candidato é uma característica que aponta uma maior dificuldade na tomada de decisões.
5 - A boa convivência entre os seres humanos é algo difícil de ser alcançado e exige das pessoas que a procuram paciência e esforço para conseguir.
         6 - O professor Ulysses continua sendo autoritário com seus alunos das escolas em que ensina, mas por outro lado é um grande amigo fora do trabalho.
7 – A relação entre o povo e os representantes sociais possibilita uma maior visibilidade na interface positiva ou negativa dos acontecimentos sociais na gestão pública dos serviços do “Estado”.
A redundância, como se vê, justifica a maior parte dos cortes: se algo “vem passando” por mudanças, só pode ser “ao longo do tempo” (o aspecto durativo da locução com gerúndio dispensa o adjunto adverbial); o mercado não oferece produtos que não estejam disponíveis para compra; o ato de fazer algo “minuciosamente” já pressupõe cuidado; e assim por diante.
Nos exemplos 4 e 7 os excessos vêm por conta de uma designação desnecessária, que sobrecarrega  a informação (é uma característica que); e de um acréscimo no qual a obscuridade parece um disfarce para a falta de informação. Ou será que o aluno sabia mesmo o que significa “interface positiva ou negativa dos acontecimentos sociais”?

terça-feira, 1 de novembro de 2016

A redação do Enem 2014

Pelo segundo ano consecutivo, o tema de redação do Enem envolve a relação entre o papel do Estado e as ações de determinados segmentos da sociedade. Em 2013 o foco esteve na Lei Seca, que estabelece limites para o uso de bebida alcoólica por motoristas. Agora está em uma resolução que considera abusiva a publicidade infantil.
O tema até certo ponto surpreendeu mas não foi considerado “difícil”, pois o assunto publicidade figura indiretamente em propostas de redação bastante frequentes em sala de aula. São raros os professores que já não apresentaram a seus alunos temas como consumismo, liberdade de expressão ou economia de mercado, nos quais de alguma forma cabe menção às mensagens publicitárias. Quem redigiu sobre um desses temas já teve oportunidade de confrontar argumentos e se posicionar sobre os perigos da propaganda enganosa ou abusiva.
Essa possível intimidade com o assunto, no entanto, poderia representar uma armadilha e fazer o candidato se fixar no geral, falando da propaganda como um todo; ou se alhear do foco, deixando de lado o público infantil.
       Para ajudar a delimitar o tema a banca apresentou três textos motivadores. O primeiro cita a Resolução 186 do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), que considera abusiva toda propaganda dirigida à criança com o propósito de persuadi-la a consumir qualquer produto ou serviço.
O segundo traz um mapa que mostra como diversos países tratam a publicidade para crianças. Há posições extremas, como a dos Estados Unidos, em que não existem leis sobre o assunto (os setores interessados criam normas e fazem acordo com o governo); e a da Austrália, em que não se permite a publicidade voltada para o público infantil.  
Já o terceiro texto motivador destaca a necessidade de preparar as crianças para compreender o que está embutido nas mensagens publicitárias a fim de, no futuro, se tornarem consumidores conscientes. Essa meta implica, desde cedo, responsabilidade consigo mesmas e com o mundo.
O tema é bastante polêmico, tanto que no primeiro texto se faz referência a um “cabo de guerra” entre ONGs defensoras dos direitos humanos e setores interessados na continuidade da propaganda dirigida ao público infantil. Não havia para o candidato muitas alternativas além de se alinhar com um ou outro grupo. A questão básica era: ser conta ou a favor da resolução? E por quê?
Em qualquer dos dois casos, ele poderia recolher bons subsídios nos textos motivadores. Se fosse contra, trataria por exemplo de valorizar o argumento de que a autorregulamentação da Conar (Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária) já é uma boa medida para coibir os abusos. Havendo um órgão específico para tratar desses casos, seria preciso uma resolução? Quais os possíveis efeitos disso? Se fosse a favor poderia levar em conta a imaturidade do público infantil, que o torna vulnerável a mensagens em que aparecem desenhos, histórias e outros recursos usados pela publicidade.
O aproveitamento do segundo texto motivador dependeria de informações sobre os países que figuram no mapa. No entanto era possível, mesmo sem um maior conhecimento, utilizá-los como subsídios para a escolha ou a defesa do ponto de vista.  Por exemplo: casos como o da França e do Chile, que recomendam o consumo moderado, poderiam servir de estímulo a um posicionamento intermediário, em que o candidato contestaria determinados pontos da resolução e defenderia outros.
      Os favoráveis à Lei poderiam, por fim, se inspirar no terceiro texto para apresentar suas propostas de intervenção social. O desafio de criar o consumidor do futuro impõe à escola, aos pais, ao próprio Estado determinados deveres, que demandam estratégias de atuação. Como operacionalizá-las preservando o direito de escolha das crianças? Indicar meios concretos e exequíveis para isto seria uma boa forma de demonstrar compromisso com a cidadania e solidariedade com as novas gerações.  

terça-feira, 25 de outubro de 2016

O tempo na redação do Enem

          Uma dúvida comum aos que vão fazer o Enem é se devem começar a responder a prova pela produção textual ou pelas questões objetivas. E caso optem pela primeira possibilidade, quanto tempo dedicar à redação? A resposta varia de acordo com cada pessoa, mas o recomendável é começar pela questão discursiva. Além de valer mais pontos, a redação exige um maior trabalho intelectual; preencher as trinta linhas (ou um número aproximado) vai muito além de marcar xis. Com prática, pode-se desempenhar essa tarefa em pouco mais de uma hora. Essa é a faixa de tempo que os alunos gastam quando fazem os vestibulares simulados.
        Alguns se ressentem de escrever sob pressão, mas as notas que obtêm em classe não são diferentes das obtidas em casa. Às vezes são até melhores. Uma hipótese para explicar isso é que na classe eles ficam mais concentrados. Geralmente o tempo que se gasta “a mais” na elaboração do texto deve-se a atitudes inúteis, como reler períodos, retocar demais as frases, e não há como fazer isso num simulado com hora para terminar (e com o professor em cima, de olho). Uma boa dica é reler os parágrafos quando já estiverem prontos. Depois ler a redação por inteiro e mudar o que for conveniente.
         O controle do tempo é importante na redação porque os textos das questões objetivas são longos; retardar-se demais na escrita compromete a atenção que se deve dar a eles. Por outro lado, é possível ganhar tempo na resposta a essas questões caso se atente para determinadas especificidades que apresentam. Ao contrário do que ocorre em outros vestibulares, que nesse tipo de questionamento enfatizam o “conteúdo”, no Enem comumente se abordam tópicos formais ou pragmáticos (procedimentos ou intenções do autor, marcas linguísticas, níveis e funções da linguagem).
           Muitas vezes a resposta é percebida logo na primeira linha do texto de suporte, na qual se evidencia, por exemplo, uma marca de registro linguístico (formal, coloquial, regional). Outras vezes ela está nas próprias alternativas, que definem erradamente determinados conceitos (como os referentes às funções da linguagem). Há casos em que está num detalhe semântico; quem soubesse que um dos sinônimos de “matriz” é “base” acertaria sem muito trabalho a questão 113 do Enem 2013. O candidato deveria apontar a alternativa “e”, segundo a qual a escrita contribui para a evolução tecnológica por “fornecer base essencial para o progresso das tecnologias de comunicação e informação”. Constava no suporte que “a impressão (escrita) é a matriz que deflagrou todo esse processo educacional eletrônico”. Isso mostra que a atenção na leitura é fundamental.
             Elaborar um roteiro reduz bastante o tempo que se leva para produzir o texto. É melhor gastar cerca de meia hora fazendo um esquema e depois ir em frente, sem interrupções, do que ficar mudando o rumo do que se quer dizer. Também é útil, para escrever com presteza, usar um vocabulário transparente e objetivo. Hesitar demais entre um ou outro termo compromete o fluxo do pensamento e, obviamente, retarda a elaboração textual.      
        Outra forma de ganhar tempo é procurar compreender bem o tema, e para isso conta bastante a leitura cuidadosa dos textos motivadores. A adequada percepção do que a Banca pede ajuda a delinear o ponto de vista e escolher o foco, ou seja, o fio expositivo. A partir daí fica fácil selecionar argumentos, estabelecer relações entre os parágrafos e apresentar as propostas de intervenção social.
          Se quiser terminar logo seu texto, não se apresse. Lembre-se de que os minutos dedicados à reflexão jamais são perdidos. Procure antecipar mentalmente o que vai escrever; por meio de pequenos tópicos (frases ou fragmentos de frase), faça um inventário das ideias a serem desenvolvidas e só redija a versão final quando tiver um arcabouço (ou seja, um esqueleto) completo do texto. Poucos têm paciência para fazer isso, mas os que fazem são depois premiados com uma fácil trilha a percorrer. E, sobretudo, com um precioso ganho de tempo. 

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Pleonasmos

         Pleonasmo é o excesso de palavras para indicar uma mesma ideia. Constitui um vício quando não reforça a expressão. Exemplo conhecido de reforço é a locução “vi com meus próprios olhos”, em que o adjunto adverbial enfatiza a veracidade do que se constatou. Expressivos são também os “epítetos de natureza”, que realçam atributos naturais de seres ou objetos: “mar salgado”, noite escura, gelo frio, “cadáver mudo” etc.
    Costuma-se, na área do pleonasmo, distinguir a tautologia da redundância. A tautologia consiste em dizer a mesma coisa com outras palavras. Numa redação sobre o desafio de convier com as diferenças, um de nossos alunos escreveu: “Conviver com o outro é um desafio para todos nós, pois cada indivíduo possui hábitos e opiniões diferentes, que não são iguais aos nossos.” As partes em negrito são tautológicas porque repetem o que está semanticamente expresso no verbo “conviver” e no adjetivo “diferentes”.
          Seguem outros exemplos, também retirados de redações:     
         - “O excesso de poder nas mãos dos traficantes faz com que a polícia declare uma guerra bélica contra eles, afetando civis e militares.”
      - “A dependência à opinião dos outros resulta em baixa autoestima, submissão passiva às vontades do outro e dificuldade em expressar sua opinião.”
         - “As pessoas colocam o trabalho como primeira prioridade na vida.”
        Em casos assim não há como falar em “epíteto de natureza”; a intensificação decorre, basicamente, do desconhecimento do sentido etimológico. Os autores ignoram que os substantivos “guerra”, “submissão” e “prioridade” contêm em seus radicais a ideia presente nos determinantes “bélica”, “passiva” e “primeira”. Pode-se argumentar quanto ao terceiro exemplo que existe uma hierarquia de prioridades, e que o aluno se referiu à mais importante. O contexto da redação, no entanto, mostrava não ser esse o caso.
        A redundância se distingue da tautologia por ser a “repetição de pormenores já implícitos em declaração prévia” (Othon M. Garcia, Comunicação em prosa moderna, p. 319). Exemplo: “De acordo com o pesquisador britânico Richard Lynn, os ateus são mais inteligentes do que os religiosos e possuem o quociente de inteligência (QI) significativamente mais alto.” O que se acrescenta sobre a maior inteligência dos ateus é desnecessário, pois está contido na informação anterior.
       Os exemplos dados até agora são de pleonasmos lexicais. Pode haver também repetições de vocábulos que não pertencem ao léxico; são os pleonasmos gramaticais: “Maria Fernanda Cândido está grávida do seu segundo filho”; “A traição ocorre exclusivamente em virtude da nossa vontade, e não dos aspectos da natureza humana”. Ambiguidade à parte, não há necessidade de pronome possessivo para indicar a gravidez da própria atriz. Da mesma forma, é supérfluo repetir o advérbio “só” por meio de “exclusivamente”; ambos significam a mesma coisa.
       Um conhecido pleonasmo gramatical é o objeto direto pleonástico: “A vida, o vento a levou”. O pronome oblíquo “a” repete o substantivo “vida”. Trata-se de pleonasmo porque o pronome, pela forma como se apresenta, pode exercer função sintática idêntica à do termo antecipado (no caso, a de objeto direto). Se o pronome viesse antecedido por um conectivo não poderia exercer tal função, o que determinaria uma ruptura na cadeia sintática (por exemplo: “A vida, não me importo com ela”). A esse tipo de quebra dá-se o nome de anacoluto.
        Merecem atenção os pleonasmos gramaticais que envolvem pronomes e advérbios relativos, em construções do tipo: 
        - “Vou dizer o nome das moças que meu amigo as viu no cinema.”
       - “Algumas pessoas poderão passar longos períodos de tempo sem encontrar uma pessoa com quem valha a pena se relacionar com ela.”
        - “Sua mente habita um mundo imaginário, onde coexistem ele e o mundo.”
     Os termos em negrito repetem os conteúdos expressos, respectivamente, no pronome “que”, no conjunto “com quem” (com a qual) e no advérbio relativo “onde”. Construções como essas devem ser a todo custo evitadas. Além de não terem valor estilístico, revelam deficiência na estruturação sintática.


sábado, 8 de outubro de 2016

O risco das definições

          Definir é explicar o significado de um termo. Na perspectiva textual, pode ser um meio de introduzir o tema. A definição serve para suprir uma provisória falta de ideias. Não sabe como começar a redação? Comece definindo.
           Um aluno começou desta forma um texto sobre a rejeição aos homossexuais: “Homofobia é a aversão que se tem pelas pessoas do mesmo sexo”. Outro iniciou uma redação sobre o fanatismo religioso, escrevendo: “O fanatismo é a adesão cega, irracional, a determinada doutrina”. As definições são precisas, como se vê. A partir daí novas ideias surgem, com ilustrações, paráfrases ou desdobramentos para os conceitos formulados.    
       Mas a definição tem seus riscos. Um deles é o autor apresentar conceitos imprecisos. Outro é aprisionar o termo definido numa grade conceitual que o limita, pois sempre que definimos alguma coisa deixamos de lado atributos que também podem caracterizá-la.
           Numa redação sobre o relacionamento dos casais no mundo moderno, um aluno escreveu: “O ciúme é um conjunto de reações desencadeadas pela ameaça à estabilidade ou à qualidade de um relacionamento”.
         Por esse ponto de vista, o que provoca o ciúme é a “ameaça à estabilidade ou à qualidade do relacionamento”. Além de restrita, a definição é falha no sentido de que descreve não o sentimento, mas o efeito que ele provoca. Ameaça à estabilidade ou à qualidade de um relacionamento é mais produto do que causa do ciúme, que deriva de outras complexas razões.     
        O risco de definir é grande quando se conceituam termos científicos ou filosóficos. É preciso conhecer bem o que o termo significa para não cometer imprecisões como esta: “A filosofia existencialista defende que o homem é produto do meio em que está inserido.”
       O aluno mistura as bolas, pois o existencialismo nada tem a ver com o determinismo. A ideia de que o homem é condicionado por fatores como herança, meio e momento se opõe radicalmente à visão de mundo existencialista. Para ela o ser humano é fruto da sua liberdade; faz seu destino a partir de escolhas livres, que se fundamentam na consciência. Nada menos determinista do que isso.
         Outro exemplo de imprecisão se encontra nesta passagem de um texto sobre a relação entre autoestima e sucesso pessoal: 
         “A autoestima é a análise subjetiva de uma pessoa sobre si mesma. Muitas vezes ela acaba sendo erroneamente relacionada ao sucesso pessoal. No entanto, podemos verificar que a autoestima depende de três fatores: do reconhecimento dado às atitudes, do sentimento de ser amado e principalmente do amor-próprio.”
         Não dá para esperar muito de um texto quando o autor não sabe o que um dos componentes do tema significa. Desde quando a autoestima é a “análise subjetiva de uma pessoa sobre si mesma”? Longe de se constituir numa análise, ela é uma medida de afeição; traduz o grau de apreço que cada um tem por si. Segundo Freud, “mede o tamanho do ego”.
          Ás vezes a definição está correta quanto ao sentido, mas tropeça no aspecto formal. É o que ocorre neste início de redação sobre desenvolvimento sustentável: “Sustentabilidade é quando o desenvolvimento econômico preserva os recursos naturais”.
          Um dos requisitos para definir corretamente é que o termo definido e o que se afirma sobre ele sejam da mesma classe. Sustentabilidade é um substantivo; logo, não pode equivaler a uma oração temporal. Só nas chamadas definições conotativas, próprias da linguagem poética, pode-se dizer que “alguma coisa é quando...”. O aluno teria produzido uma formulação razoável (embora ainda incompleta) se tivesse escrito, por exemplo, que “sustentabilidade é um modelo de desenvolvimento econômico que preserva os recursos naturais”. 

Um escorrego de morfologia

        A frase abaixo foi retirada de uma matéria da IstoÉ sobre um medicamento contra a impotência:    
       “Por ser ingerido diariamente, não é preciso calcular quando ter relação (os outros remédios exigem um tempo para fazer efeito).”
         Li críticas de professores de português à flexão do verbo “ter” nessa passagem. Dizem que a forma correta é “tiver”, pois ele estaria empregado no futuro do subjuntivo. Um dos que defendem esse ponto de vista escreve: “Este (o futuro do subjuntivo) participa de orações iniciadas pela conjunção ‘se’ (condição hipotética futura) ou pela conjunção ‘quando’ (tempo hipotético futuro).”
         A explicação seria correta se o vocábulo “quando” naquele contexto fosse mesmo conjunção. Ou seja: se a oração iniciada por ele se classificasse como adverbial temporal. Não é isso que ocorre.
       Vejamos por quê. O autor da matéria se refere a um medicamento que, ao contrário de outros com o mesmo fim, pode ser usado todos os dias. Essa frequência traz uma vantagem ao usuário: não precisar calcular o momento adequado para ter relação. Tal vantagem não existe em drogas similares, que “exigem um tempo para fazer efeito” e, consequentemente, determinam que os usuários escolham a melhor ocasião de tomá-las.  
  Assim, a palavra “quando” naquela frase não é conjunção, mas advérbio. Introduz oração objetiva direta, na qual exerce função sintática. Considerar a oração indicada pelo “quando” como temporal deixaria sem complemento o verbo “calcular” e sem sentido a frase (calcular o quê?). De fato, o autor não quis dizer que se precisa calcular “alguma coisa” no momento de ter relação; esse momento (ou seja, o “quando”) é o próprio objeto do cálculo.
Nesse tipo de construção a oração objetiva se diz justaposta, pois é introduzida por um termo que, ao contrário da conjunção, exerce função sintática. Além de “quando”, podem aparecer outros advérbios ou locução correspondente. Por exemplo:
- “não é preciso calcular como ter relação” (modo)
- “não é preciso calcular onde ter relação” (lugar)
- “não é preciso calcular quanto ter relação” (intensidade)
- “não é preciso calcular por que ter relação” (causa)
O infinitivo, nesse caso, constitui o verbo principal de uma locução com auxiliar modal implícito (poder ou dever): “não é preciso calcular quando (se pode ou deve) ter relação”.
Enganos como o acima referido mostram o perigo de classificar vocábulos ou orações sem atentar para o sentido da frase. Resultam de um hábito por vezes comum no aprendizado da língua, que é o de decorar classes de palavras. Quem faz isto parece esquecer que elas se definem de acordo com o contexto.

Augusto dos Anjos no Enem

A questão 97 do Enem 2014 (prova rosa) tem no suporte o soneto “Psicologia de um vencido”, de Augusto dos Anjos. Transcrevemos abaixo a composição e a seguir fazemos um breve comentário das alternativas propostas pela banca:  
            
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênesis  da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.

Profundissimamente hipocondríaco,
Este ambiente me causa repugnância...
Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
Que se escapa da boca de um cardíaco.

Já o verme — este operário das ruínas —
Que o sangue podre das carnificinas
Come, e à vida em geral declara guerra,

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,                 
E há-de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!

Augusto dos Anjos, cujo centenário de morte se comemorou no último 14 de novembro, é um dos autores mais originais da nossa literatura. Morreu em Leopoldina (MG), cerca de três meses após haver deixado o Rio de Janeiro. Tinha ido morar no Rio a fim de publicar o “Eu”, seu livro famoso.  
Antes de chegar a Leopoldina ele peregrinou à procura de emprego, ensinando em várias escolas e dando aulas particulares. Na cidade mineira encontrou enfim estabilidade econômica e paz para continuar produzindo sua obra, mas essa situação durou por pouco tempo. Numa manhã chuvosa o poeta compareceu resfriado ao enterro de um dos patriarcas da cidade; voltou gripado e ainda assim deu aulas à tarde e à noite. O resultado foi uma pneumonia, que viria a matá-lo algum tempo depois.  
Em “Psicologia de um vencido” aparecem algumas das principais características da sua poesia, como o uso de termos científicos (carbono, amoníaco, epigênesis) o gosto pelos superlativos (profundissimamente), a tendência à morbidez (hipocondríaco, cardíaco) e a obsessão pela morte (verme, frialdade).
O poeta escreveu entre o fim do século XIX e o início do século XX, quando em nossa literatura coexistiam manifestações realistas, parnasianas e simbolistas. Na Faculdade de Direito do Recife, onde estudou, ele tomou contato com as ideias científicas advindas do Positivismo. Leu Augusto Comte, Herbert Spencer, Ernst Haeckel e outros mais que exaltavam a matéria e negavam ao ser humano qualquer dimensão transcendente. Segundo a visão positivista o homem era regido por leis fisiológicas, mecânicas, e nisto não se distinguia dos outros animais.
O “Eu” é sobretudo uma resposta agônica e desesperada a esse ponto de vista. O poeta se rebela contra o Filósofo Moderno (positivista), que traz “no deserto das ideias/ o desespero endêmico do inferno”. E procura enxergar no ser humano algo além do “horror dessa mecânica nefasta/ a que todas as coisas se reduzem”.        
Diante disso, os vocábulos científicos não entram na poesia de Augusto “para restituir a visão naturalista do homem”, conforme se diz na alternativa c. Entram como ingredientes para recriações simbólicas e suporte para figuras fônicas (assonâncias, homofonias, aliterações). São um componente fundamental da expressividade a que a banca faz referência na alternativa d (como se sabe, a correta).
Vocábulos científicos e termos coloquiais concorrem para afastar o poeta da musicalidade fluida e das imagens “sublimes” comuns na escola simbolista, que se preocupa em traduzir o Inefável (ou seja, o indizível). Assim, também não está correta a alternativa b, pois não existe no paraibano nenhum “empenho (...) pelo resgate da poesia simbolista”. Ele parte do Simbolismo para incorporar elementos de modernidade à sua obra. Substitui os termos raros e nobres, que aproximam os artistas da arte pela arte, por um vocabulário cotidiano, trivial e às vezes de mau gosto.
A alternativa e também não está correta. Nela se diz que a poesia do paraibano é descritiva e incorpora valores morais e científicos depois renovados pelos modernistas. O descritivismo, sobretudo pelo que tem de exterior, está mais ligado à estética parnasiana (e também ao detalhismo próprio da investigação científica). Em Augusto dos Anjos a representação da natureza se dá a partir de um mergulho nas forças obscuras que promovem o desenvolvimento da matéria rumo à consciência. É impossível proceder a essa representação ficando num plano apenas descritivo, ou seja, destacando a superficialidade dos objetos.
O que também torna incorreta essa alternativa é a afirmação de que houve por parte dos modernistas a preocupação em “renovar valores morais e científicos”. Os modernistas não tinham propósitos moralizadores; procuravam, com bastante independência de espírito, se opor à tradição e incentivar a pesquisa estética. 
A alternativa a, por fim, está errada porque Augusto dos Anjos não é considerado um poeta de transição por haver praticado o soneto e fazer versos metrificados e com rima. Tais recursos constituem, na verdade, marcas tradicionais da sua poesia e até o fizeram ignorado pelos modernistas. A novidade do paraibano, entre outras inúmeras e complexas razões, estava no uso de um vocabulário até então limitado à prosa e do qual parecia impossível extrair efeito poético.
Esse prosaísmo, aliado a uma visão bastante singular dos homens e de sua relação com a natureza, transformou o autor do “Eu” num “caso” que vem desafiando os estudiosos e fascinando o leitor comum.