Um leitor me escreveu pedindo a análise
da frase: “Fez duas cirurgias: uma em São Paulo, outra no ouvido”. Ele diz não
ter ficado satisfeito com a explicação de um professor: “A aula (dele) envolvia
advérbios, não a frase em si”, explica.
Ocorre na frase uma quebra de
paralelismo semântico. Essa quebra consiste em coordenar termos de diferentes campos
lexicais. A referência a São Paulo faz esperar que se mencione outro lugar, e
não o órgão operado.
A quebra do
paralelismo semântico caracteriza a chamada enumeração caótica, que tem muitas vezes efeito humorístico. Um
exemplo desse tipo de quebra é esta famosa passagem de Machado de Assis: “Marcela
amou-me durante quinze meses e onze contos de reis”.
Espera-se que, após a conjunção “e”,
complemente-se a referência temporal em semanas ou dias; em vez disso o narrador
menciona uma quantia em dinheiro, o que à primeira vista parece um despropósito.
Logo se percebe o alcance estilístico da ruptura; a menção ao dinheiro sugere
que Marcela ficou com Brás Cubas por interesse, e não por amor. O resultado é
bem melhor do que se Machado simplesmente escrevesse: “Marcela amou-me durante
seis meses. Nesse período, levou-me onze contos de réis.” Aqui temos apenas a
informação, sem a surpresa e a graça promovidas pelo estilo.
Efeito semelhante ao de Machado obtém
Drummond quando escreve, visando menos ao humor do que à tradução do desalento
existencial: “Perdi o bonde e a esperança...”. A coordenação entre um termo do
campo lexical dos transportes e outro do campo dos sentimentos promove uma
ruptura que amplia o alcance da perda. Não se trata apenas da fortuita perda de
um meio de transporte; o que se perdeu foi algo que assegura o percurso da própria
vida. Sem esperança não se vai a lugar nenhum.
Não é
qualquer ruptura semântica que promove o efeito estilístico. Muitas vezes a
quebra não passa de uma falha estrutural. A frase enviada pelo leitor, por
exemplo, é mais lacunosa do que caótica (no sentido que comentamos aqui). O destinatário
fica sem saber qual cirurgia foi feita em são Paulo e onde ocorreu a cirurgia
que se fez no ouvido. Não há suplemento, mas carência de informação. Tampouco
transparece alguma intenção crítica, ou jocosa, promovida pelo jogo dos significantes.
Outro seria o efeito se o autor tivesse escrito, por exemplo: “O
cirurgião cortou-me o ouvido e o bolso”, sugerindo que o médico cobrou caro
pela operação. O emprego metonímico de “bolso” (no lugar de dinheiro) quebraria
o paralelismo mas encaminharia o leitor para um novo plano interpretativo,
enriquecendo semanticamente a informação.