domingo, 22 de dezembro de 2019

10 conselhos a quem vai ensinar redação


Não ensine como fazer; mande primeiro os alunos fazerem. Ao corrigir o que escreveram, eles entenderão como deve ser feito.
                                                      
Não corrija uma oração, um período, um parágrafo sem explicar o motivo da correção e discutir com a turma uma melhor alternativa. Se o aluno não entender por que errou, ele tenderá a repetir o erro.
                                                     
Pense muito antes de dar um 10. A nota máxima pode dar ao estudante a impressão de que não precisa aperfeiçoar o texto. Além disso, é preferível que no vestibular ele se surpreenda para mais do que para menos.
                                          
Procure mostrar a importância do respeito à norma culta. Erros de gramática ou ortografia são facilmente notados. Mesmo que não prejudiquem a comunicação, diminuem a credibilidade de quem escreve.
                                                   
Procure mostrar aos alunos a diferença entre redigir e escrever (no sentido literário).  Um redator se faz, um escritor nasce. Logo, a boa redação está ao alcance de todos. Só depende de leitura, estímulo e muito, muito treino.
                                                   
Estimule a leitura de ficção e poesia. O contato com os textos literários amplia a sensibilidade, revela as inúmeras possibilidades da língua e aumenta a capacidade interpretativa.
                                                  
Procure ressaltar a diferença entre escrever certo e escrever bem. A gramática não assegura a expressividade nem a boa organização textual. Tente mostrar isso comparando textos apenas “certinhos” com outros nos quais prevalecem a invenção e a expressividade.
                                                 
      Declare guerra ao lugar-comum e à imprecisão vocabular, motivando os alunos a ir ao dicionário. O lugar-comum anula a personalidade do redator, e a imprecisão vocabular compromete o rigor do pensamento. Usar os termos adequados é um dos segredos de redigir bem.
                                                
Escolha com cuidado os temas a serem desenvolvidos. Lembre-se de que cada tema é pretexto para leituras sobre a atualidade e um meio de aumentar o acervo de informações do aluno. Sem informações suficientes, é impossível apresentar bons argumentos.     
                                     
Leia em voz alta algumas das redações corrigidas, destacando-lhes os aspectos positivos e os negativos. Os alunos têm curiosidade sobre os textos uns dos outros e encaram como saudáveis desafios as produções bem escritas, que testemunham a evolução dos colegas.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

A redação do Enem 2019 em tela


O tema da redação do Enem deste ano não deixou de causar surpresa. Como ocorreu em 2017, quando foram abordados os desafios para a formação educacional dos surdos, em 2019 a proposta se desmembrou num tópico geral (a arte) e em outro específico (o cinema). Muitos professores que em 2017 trabalharam o tema da inclusão certamente não se detiveram nas dificuldades da comunidade surda. Da mesma forma, o tema da democratização da arte (e, por extensão, da cultura) deve ter ocorrido a muitos, que dificilmente o terão vinculado ao cinema.  
Ao priorizar uma classe, ou um setor, a banca visa não só aprofundar o recorte temático (impedindo que o candidato generalize e fique no assunto), como também trazer um componente de surpresa que aumente a dificuldade no desenvolvimento do tema. Essa não deixa de ser uma forma de identificar os bons candidatos, ou seja, aqueles que se mostrem capazes de extrair dos textos motivadores informações que lhes permitam produzir uma redação convincente.  
Os textos que a banca selecionou para compor a coletânea são abrangentes e informativos, mas sobretudo o III e o IV estabelecem um vínculo com a palavra-chave: democratização. A banca não queria que o candidato abordasse o cinema como arte inovadora (Texto I) ou como um meio de transfiguração da experiência pessoal (Texto II). Queria que o fizesse levando em conta as novas possibilidades (ou não) de acesso às películas. É nos textos III e IV que efetivamente se problematiza o tema, e deles é que podiam surgir as propostas de intervenção (embora, claro, isso dependesse muito do posicionamento assumido pelo aluno).         
Grosso modo, pode-se dizer que os dados e percentagens apresentados no texto III problematizam o tema em função de um desafio para a classe média: como fazer as pessoas desse segmento social sair de casa para ir ao cinema? Isso faz pensar nas estratégias adotadas pelas companhias exibidoras para encher as salas (combos, poltronas superconfortáveis, projeções em 3 D). Já o texto IV contempla os estratos sociais de baixa renda, mostrando com dados e cifras que o cinema tem se tornado um privilégio dos centros financeiramente abonados.  O interior, por não ter grandes shoppings, não conta com salas de exibição (apesar de servir de cenário para filmes como “Bacuaru”, que ganhou vários prêmios no exterior; isso não deixa de ser uma irônica contradição).
   A quem não se deteve nos pontos que venho mencionando, lembro que os textos motivadores (como o nome diz) “motivam” porém não esgotam. Uma boa redação se mede pela consistência e a coerência, e não pelo simples fato de contemplar um aspecto da coletânea. A ideia de democratizar, tornar público, é muito ampla. Envolve por exemplo o Ministério da Cultura, que poderia entre outras medidas buscar atender a uma antiga reivindicação da comunidade surda e inserir legendas nos filmes nacionais (num tempo em que se fala tanto em inclusão, ela tem sido injustamente privada de conhecer as realizações cinematográficas do seu país). Envolve também os clássicos agentes “escola” e “família”, que podem agir como promotores (ou ao menos encorajadores) do acesso às produções cinematográficas.
À escola caberia, por exemplo, incentivar a criação de cineclubes, realizar debates sobre filmes importantes ou promover seminários que tratassem da relação entre o cinema e as outras artes (sobretudo a literatura). Já a família poderia estimular a ida às salas de cinema como complemento ao processo educativo, que não pode prescindir da formação cultural. Eu, por exemplo, ainda hoje sou grato ao meu pai pela mesadinha para assistir às sessões do cinema de arte no Cine Municipal às quintas-feiras. Graças a essa prática, afeiçoei-me a nomes como Fellini, Antonioni, Buñuel, Godard e tantos outros.
 Por falar em Godard, é dele a famosa definição do cinema como “a verdade 24 vezes por segundo” (referência ao número de vezes em que os fotogramas giram no projetor para dar a impressão de movimento). O cinema seria uma ilusão que amplifica a verdade. De tão boa, a citação do francês bem que poderia servir de remate a um texto sobre o tema. Vou aproveitar a dica e fechar com ela este artigo.

sábado, 28 de setembro de 2019

Sobre a gramática no texto

É impressionante o descaso com que as escolas, de modo geral, vêm tratando o ensino da gramática. Constato isso nas redações que corrijo. A maioria dos alunos não consegue identificar o sujeito de uma oração porque não sabe colocá-la na ordem direta. Tal desconhecimento gera erros de concordância, que interferem na coesão.
A falta de embasamento sintático, associada a falhas semânticas, produz enunciados ilógicos que também comprometem a coerência. Os alunos precisam aprender a pensar, estruturar com clareza um enunciado, expandir e refinar o vocabulário -- e não apenas reconhecer o registro conveniente a determinadas situações sociais. Isso se aprende no cotidiano. Na escola ele deve aprender a ler bem, exercitar o raciocínio, assimilar o bom exemplo de grandes autores.
             É fácil corrigir alguém que, numa redação, usa “grana” em vez de “verba”; diz-se que “grana” é coloquial e não cabe num texto como o dissertativo-argumentativo. O que podemos fazer, no entanto, quando nos deparamos com construções como as que seguem? “Se as pessoas tem o direito de ir e vir, ou seja, a liberdade de locomoção e expressar a sua opinião. Portanto, o normal seria haver uma harmonia entre essas diretrizes”; “Com a falta de ética na governação do país terá como consequência a corrupção, atualmente o Brasil está ocupando a 96º país quando o assunto é combate a corrupção.”; “Um dos principais rios que cortam o Estado de São Paulo, o Tietê, considerado um rio morto em grande parte de sua extensão, é resultado desse descaso.” São de alunos do terceiro ano. Parece-me que falar em inadequação a propósito delas é muito.
           Falar em “inadequação” em vez de “erro” me parece pouco para convencer os alunos do ensino médio a escrever com o devido respeito à gramática. Entendo que o que se chama de “erro” é antes um cruzamento de registros (o coloquial descuidado superpondo-se ao culto, por exemplo). Mas é preciso ensinar a norma culta em algum lugar, e esse lugar é a escola.
          Como diz José Saramago, “cabe à escola ensinar o aluno a escrever corretamente e também explicar por que as regras são assim, e não de outra maneira. Mas escola não é o lugar onde se subverte e revoluciona a estrutura da língua. Essa tarefa pertence aos escritores, se estes consideram que têm motivos para o fazer.”

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Enem - Refazendo uma proposta de intervenção

    O fragmento abaixo constitui a conclusão de uma redação argumentativa sobre os problemas do envelhecimento no Brasil. Leia-o:

     Logo, tornam-se imprescindíveis reformas de âmbito governamental para contribuir no bem-estar desse montante populacional crescente, com alterações no sistema público de saúde, desde a sua estrutura até a adesão de médicos qualificados para o tratamento de idosos, principalmente com doenças crônicas, a privatização e modernização de asilos, objetivando melhorar a qualidade no cuidado aos mais velhos, e uma maior fiscalização quanto ao respeito e cumprimento dos benefícios a essa faixa etária, que é essencial na sociedade brasileira.
        
     Os principais pontos negativos dessa passagem são:

1) falta de pontuação;
2) acúmulo de propostas sem nenhum elemento de ligação entre elas;
3) uso excessivo de substantivos em vez de infinitivos.

  O resultado é um nivelamento caótico de informações apresentadas num só período, o que dificulta a leitura e enfraquece as sugestões.

   Uma forma de melhorar o texto é destacar as propostas apresentadas (em negrito) e elencar as tarefas associadas a cada uma. Podem-se já substituir os substantivos por infinitivos:

- alterar o sistema público de saúde
(como?) modificando-lhe a estrutura e contratando médicos qualificados
- privatizar e modernizar os asilos
(para quê?) melhorar a qualidade do cuidado com os mais velhos
- fiscalizar o cumprimento dos benefícios

    O passo seguinte é reescrever o texto inserindo os operadores argumentativos, que vão estabelecer a ligação entre os períodos. Como nessa parte do texto não há argumentação, tais operadores vão ser basicamente de acréscimo (também, ainda, ademais etc.):

      Logo, são imprescindíveis reformas que contribuam com o bem-estar desse crescente segmento populacional. O governo deve alterar o sistema público de saúde, modificando-lhe a estrutura e contratando médicos qualificados para o tratamento de idosos – sobretudo os que padecem de doenças crônicas. É preciso também privatizar e modernizar asilos, objetivando a melhora no cuidado com os mais velhos. É necessário ainda fiscalizar o cumprimento dos benefícios destinados a essa faixa etária, que é essencial para a sociedade brasileira.

  
      

quinta-feira, 9 de maio de 2019

O perigo da falsa erudição


“Sempre que abro um livro e me deparo com um
trecho difícil, não me deixo consumir pela
ansiedade; depois de uma ou duas tentativas,
desisto do esforço (...). Se um livro me enfastia, pego
outro.” (Montaigne)

“Escrever com simplicidade requer coragem, por e-
xistir o risco de se ser (...) considerado simplório
pelos que acham que a prosa intragável é um sinal
de inteligência.” (Alain de Botton)
   
                                       
        A boa escrita exige clareza e domínio do tema. Exige sobretudo uma apresentação dos fatos e ideias com base na realidade observável. Isso implica objetividade, rejeição a preciosismos (escrita difícil) e a fuga à pseudoerudição.

            Essas são características do que Steven Pinker chama de estilo clássico, que procura “ver o mundo” (e não apenas analisá-lo ou teorizar sobre ele), tornando-o visível também para quem lê. Isso é impossível quando o redator, em vez de tratar com clareza e transparência o tema, opta por discussões técnicas, filosóficas ou metalinguísticas de pouca consistência argumentativa. O resultado é um texto obscuro e por vezes alheio à discussão do tema.

         Para que melhor se entenda o que queremos dizer, apresentamos abaixo quatro fragmentos de redações de alunos sobre o tema “O que é ser original” (as passagens não tiveram nenhum tipo de correção):

                                                          I
           Outrossim, isso (a inovação) está se fazendo menos presente na sociedade. Segundo o conceito de aldeia global de Marshall McLuhan, a globalização fez com que cada vez a quebra de fronteiras se desse no âmbito cultural; como a cultura, para Kant, são conhecimentos “a priori”, esses, caso sejam uniformes – como proposto por McLuhan --  formarão conhecimentos “a posteriori”, os quais dependem da experiência, sem particularidades, ou seja, experiências menos originais.

                                                         II
           A partir da vanguardas europeias, a acepção do original se perdeu – foi posta em questão e, mais que nunca, a excentricidade foi mal interpretada, um dos temores de Fernando Pessoa. O excêntrico é louco, já o outro é gênio – pequenas diferenças importantíssimas e perigosas. Como disse Kant, a razão é inata e empírica; a inata é igual em todo ser humano, o que o evolucionismo já contradiz, pois os indivíduos têm capacidades distintas; considera-se, então, que no homem essas diferenças biológicas podem sim favorecer um raciocínio diferenciado; já a segunda é o desenvolvimento do fenótipo, a que mais influencia, já que estar predisposto a uma característica não implica a certeza de a ter. Nessa sequência, o original e o excêntrico têm ambos o raciocínio diferenciado, mas só o original respeita o imperativo categórico, a ética.

                                                       III
           A originalidade se dá por uma série de fatores, o primeiro deles é a criatividade. A habilidade de resolver situações problema de maneira inovadora é altamente importante para ser considerado original pois demonstra que o indivíduo não tem medo de errar.
            Porém, para que seja possível exercer a criatividade é necessário que exista um acúmulo de conhecimento por parte do indivíduo. Para se inovar é preciso conhecer o problema com que se está lidando, e quanto mais conhecimento se tem, menor é a chance de equívoco.

                                                      IV
            A ideia de originalidade no mundo atual tem uma função muito peculiar: estimular o consumo. Assim, a industria cria personagens, tendências de moda e aparelhos tecnológicos mais sofisticados me que rapidamente se tornam obsoletos. O Vale do Silício, na Califórnia, Estados Unidos, maior centro tecnológico do mundo é um grande exemplo de criatividade e inovação, onde grandes empresas buscam por novas ideias, na tentativa de desenvolver novos produtos que tornem-se opção para consumo da maior parte da sociedade.

                                                  Comentários

              É fácil ver que, em I e II, os alunos estão mais preocupados em citar autores e apresentar conceitos do que em discutir concretamente o tema. No primeiro, para desenvolver a tese de que a inovação “se faz pouco presente na sociedade”, o aluno cita McLuhan e o seu conceito de globalização. Até aí tudo bem: a globalização determina certa homogeneização de comportamento que pode levar a uma menor originalidade das pessoas. O problema é que, para desenvolver o argumento, o estudante cita Kant e promove uma confusão entre os dados apriorísticos, que “a cultura internaliza”, e a uniformização promovida pela aldeia global. A ideia de que a homogeneização da cultura gera conhecimentos a posteriori é extremamente confusa. Mistura referências dos dois estudiosos, que se debruçam sobre diferentes domínios cognitivos e comportamentais. Seria preciso um amplo trabalho analítico-interpretativo para associar Kant e aldeia global.

         Em II o problema se repete com mais gravidade. O parágrafo começa com a afirmação pouco clara de que, a partir das vanguardas europeias, “a acepção do original se perdeu” (?). O que vem a ser isso? Adiante o aluno esclarece que ela foi na verdade posta em questão, o que faz algum sentido; mas a obscuridade volta com a  afirmação seguinte, de que a excentricidade “mais do que nunca, foi mal interpretada”. Original é o mesmo que excêntrico? E por que essa má interpretação seria o temor de Fernando Pessoa (afirmação vaga, inesperada e destituída de qualquer explicação)? 

          Como se isso não bastasse, seguem-se inoportunas considerações sobre o inatismo e o empirismo da razão a partir de Kant (de novo ele!) e uma referência ao evolucionismo, que levam cada vez mais a discussão para longe do tema. O aluno ainda traz elementos da biologia (com a menção ao fenótipio) e termina por uma referência à ética. O peso dessa massa terminológica soterra o pensamento e tira dele o que pode haver de claro e discernível. O ápice da impropriedade é associar originalidade a inatismo e excentricidade a empirismo, uma mistura arbitrária entre categorias conceituais distintas. 

         O panorama melhora na passagem III. O teor das afirmações ainda é abstrato, pois o aluno não refere fatos, exemplos, ilustrações. No entanto percebemos nessa passagem uma reflexão pessoal, feita com bom senso e simplicidade. Com clareza, sobretudo. Não há como negar que a habilidade para resolver situações-problema de maneira inovadora constitui um bom requisito para se aferir a originalidade. Também é certo que, sem estudo e conhecimento dos problemas, é impossível chegar a soluções originais. O aluno não “descobre a pólvora”, mas se recusa a usar balas de festim!

       A passagem IV é a que melhor realiza o propósito de discutir o tema sem preciosismos, citações desnecessárias e confusões conceituais. O quadro que o aluno apresenta no início é concreto, perceptível e marca inegavelmente o mundo atual. Depois de afirmar que originalidade e estímulo ao consumo se associam, o aluno detalha isso com fatos e outras evidências. Em vez de discutir conceitos ou citar autores difíceis, menciona elementos que todos conseguimos “ver” (personagens, moda, aparelhos tecnológicos). Em seguida reforça a argumentação com um exemplo que se constitui num símbolo do que está afirmando; quem, vivendo no mundo de hoje, discorda de que o Vale do Silício é uma usina de ideias originais que visam (entre outros objetivos) a estimular o consumo?
         O bom texto dissertativo precisa disto: concretude, informação e uma análise pertinente do que é apresentado.