quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Coisas

 

Dois amigos conversam após a aula de filosofia.    

– Viu que coisa?

– Vi. Achei a aula coisificante!    

– Ele não explicou o que disse que ia explicar.   

– Pois é. O conceito kantiano da...

– Isso! Da “coisa em si”!    

– “O que está além da representação, inacessível ao intelecto e aos sentidos”. Esse era o espírito da coisa, mas terminei sem entender bulhufas.

– Ele poderia ter explorado mais a noção de “coisidade” da coisa. Ou mesmo de alienação, apelando dialeticamente para Marx.

– Marx?! Não misture as coisas.

– Sei que o tema é complexo, mas com algum esforço ele talvez conseguisse.  

– Talvez. A coisa só não foi pior porque ele acabou reconhecendo a falha. Essa foi para mim a melhor coisa da noite: o seu reconhecimento de que não é lá grande coisa.

– Também não humilhe o homem... Isso é coisa de ressentido.

– Ressentido coisa nenhuma.

– Não podemos julgar o professor apenas por esse erro. Cada coisa tem sua medida, não é certo extrapolar.

 –Tá bom. Mas saiba uma coisa: se aquilo se repetir, eu pego uma coisa da sala e jogo nele. 

– Que coisa?

– Uma bem pesada, claro.   

–Tolice. Isso não é coisa que se faça. Ele tem o seu valor.

– Tinha! Veja como são as coisas: não faz muito tempo ele era o tuxaua, uma "coisa" em termos de filosofia. E agora?

– Mas ele vai se reabilitar. Se há uma coisa certa neste mundo, é que um dia se segue ao outro.

– Se reabilitar como? Fazendo o quê?

– Sei lá. Qualquer coisa que nos leve de novo a confiar nele.

– E qual seria?

– Aí é que está a coisa: cabe a ele descobrir.

– Desconfio de que não conseguirá.    

– Por quê? Você está com má vontade... Pegue suas coisas e vamos embora.

– Já vou. Mas tem uma coisa: se ele não se reabilitar, vou passar isso na sua cara. Você está defendendo demais aquele coisa-ruim. Parece até que há... alguma coisa entre vocês dois.

Vamos embora, antes que eu me irrite! Você já não está falando coisa com coisa!

A nota

 O maior risco da interpretação é o intérprete ver no texto o que ele não tem. A essa prática dá-se o nome de superinterpretação, que não se confunde com o preciosismo. O preciosismo é o hábito de usar palavras “difíceis” para disfarçar a ausência de conteúdo (palavras demais, como se sabe, correspondem a ideias de menos).

            Já a superinterpretação diz respeito ao leitor, que vai além do que está dito. Vislumbra intenções, sutilezas, duplos sentidos onde muitas vezes não há mais do que mediocridade semântica. Quando o criticam, diz que o texto é uma obra aberta (só que ele tenta abri-la demais!).

            A superinterpretação pode ocorrer de boa ou de má-fe. Um exemplo do segundo caso é a correção que certo professor fez ao texto de um estudante que “precisava passar”. O tema da redação era “a amizade”, e o aluno escreveu apenas o seguinte: “Num tô afim de falá disso agora, pô. Tô sem ninguém.”

            O mestre lhe deu 9,0. Convocado à diretoria para se explicar, redigiu o seguinte comentário:

 

             O texto é sintético, ou seja, não revela o pecado da verborragia. A economia de meios expressivos se constitui num importante fator de coerência, pois o excesso de palavras não combinaria com a resolução do aluno em não escrever. Essa atitude de recusa, em que se percebe um misto de tédio e rebeldia, determina o minimalismo que orienta toda a redação.

            Vejamos algumas provas disso. O advérbio “não” é trocado por “num”, bem mais incisivo devido à ausência do ditongo. Com um “não” é possível negociar; com um “‘num” (abusado e peremptório), jamais. Merece também realce a troca de “estou” por “tô”, em que a aférese (supressão de fonemas iniciais) reforça a propensão ao tartamudo, ao pontual, ao monossilábico, própria de quem não quer muita conversa.

             A seguir vem uma infração à norma culta que, no entanto, se torna funcional no contexto de rejeição instaurado desde as primeiras linhas. A troca de “a fim” por “afim” (um erro de morfologia) justifica-se pela intenção de condensar o sentido dos homônimos. É como se o valor de finalidade contido na locução prepositiva se enlaçasse à ideia de afinidade presente no adjetivo, numa espécie de fusão fonossemântica que procura destacar a indisposição afetiva. O aluno parece dizer, com ceticismo: “Não estou a fim de um afim”, dando a entender que se cansou de procurar um amigo.

            O ceticismo também explica a forma verbal “falá”, pois a presença do “r” sugeriria uma vibração em nada condizente com o ânimo do autor (de uma seca e exasperada contundência). Tal ânimo se confirma no uso do monossílabo de teor exclamativo que aparece no fim do período: “pô”. Esse “pô”, com apócope (omissão de fonemas finais), acentua a dramaticidade da negativa.

             No segundo período repete-se a aférese (tô), mas agora seguida por uma expressão em português correto (sem ninguém). Nessa parte do texto, de um confessionalismo despojado, o estudante explica suas razões. Percebemos que as omissões e os deslizes se deveram a ele estar sozinho e, nesse estado, não ver sentido em escrever sobre a amizade. Compreendemos então que a recusa foi determinada por razões existenciais, que encontraram um correlato perfeito nas escolhas linguísticas.

          Essa é a explicação para a nota que lhe dei.

 

           O aluno passou. O professor, claro, perdeu o emprego. Algum tempo depois, foi contratado pelo jornal da situação. Dizem que sua função no periódico é fazer a crítica dos poemas do governador.

Notas sobre a voz passiva

 

Há manuais de redação que rejeitam o uso da voz passiva. Orientam que se diga, por exemplo, “O diretor suspendeu os alunos”, em vez de “Os alunos foram suspensos pelo diretor”. Existem casos, no entanto, em que a passiva é desejável. Nem sempre interessa ao redator afirmar que alguém faz alguma coisa. Ele pode querer dizer que alguma coisa “é feita”, destacando o termo que sofre a ação. Afirmar “o livro foi lido em pouco tempo pela turma” não é o mesmo que dizer “a turma leu o livro em pouco tempo”. No primeiro caso o foco recai no livro; no segundo, recai na turma.

Segundo Steven Pinker, “muitas vezes o escritor precisa desviar a atenção do leitor para longe do agente de uma ação. A voz passiva lhe dá essa possibilidade” (“Guia de escrita”, p. 75, Contexto). Por exemplo: “Quem não estiver de farda será proibido de entrar.” Proibido por quem? A passiva é um meio de camuflar o responsável por essa antipática interdição.

O propósito de esconder o agente pode se dever também a modéstia. Na apresentação de uma monografia, o autor tende a escrever: “Um enorme tempo foi gasto para levantar as fontes”. A passiva é um meio de ele “disfarçar” que dedicou muito tempo à tarefa. Outra forma seria usar o “plural da modéstia”, que também é uma forma de atenuar o egocentrismo (“Gastamos” um tempo enorme para levantar as fontes). Mas nesse caso o foco não mais estaria no tempo despendido.   

Omitindo o agente da ação, corre-se o risco de dar ao leitor uma falsa ideia de quem a pratica. É o que ocorre nesta passagem da redação de um aluno: “No texto Cortina de Burrice, de Cláudio de Moura e Castro, é feita uma comparação entre a sociedade brasileira e a europeia.”

O estudante dá a entender que a comparação entre a sociedade brasileira e a europeia é feita por outra pessoa, e não pelo próprio Cláudio de Moura e Castro. Ele não correria esse risco se tivesse optado pela voz ativa: “No texto Cortina de Burrice, Cláudio de Moura e Castro faz uma comparação entre a sociedade brasileira e a europeia.”

Vale a pena lembrar que a manutenção da voz concorre para a unidade do texto. Se a voz ativa aparece na primeira oração, é desejável que também apareça na(s) seguinte(s). O efeito é muito ruim quando isso não ocorre. Veja: “Os bandidos destruíram as evidências do crime e novas provas foram forjadas.” Se o sujeito é o mesmo (os bandidos), por que mudar a voz? É mais prático e direto dizer: “Os bandidos destruíram as evidências do crime e forjaram novas provas.” 

A voz passiva analítica (feita com verbo auxiliar) deve ser usada com parcimônia. Seu exagero tende a dificultar a leitura devido ao excesso de locuções. O prejuízo para o estilo é grande. Confira neste exemplo: “Foi feita” uma pesquisa para sondar a preferência dos homens quanto às mulheres com quem gostariam de “ser casados”. “Foram rejeitadas” por grande parte deles as liberais, as muito bonitas e as que já tinham filhos de outros casamentos.

O ideal, em casos como esse, é optar pela voz passiva sintética (com o pronome “se”) ou pela voz ativa, em que é natural a ordem direta. O texto melhora muito com as modificações: “Fez-se” uma pesquisa para sondar a preferência dos homens quanto às mulheres com quem gostariam de “se casar”. Grande parte deles “rejeitou” as liberais, as muito bonitas e as que já tinham filhos de outros casamentos.

Antes de encerrar estas notas, chamo a atenção para uma escolha bizarra que por vezes aparece nas redações. Trata-se de uma espécie de cruzamento entre a voz passiva analítica e a sintética. Pincei de outro aluno este exemplo: “Não é novidade dizer que no Brasil não se é cumprida as leis ambientais.” “Não se é cumprida”? Isso não existe em português. O aluno deveria dizer que as leis ou “não são cumpridas”, ou “não se cumprem”.

         Como se vê, não há motivo para rejeitar de antemão a voz passiva. O importante, como em toda escolha linguística, é atentar para a pertinência do seu emprego. Redige bem aquele que, imune a interdições preconceituosas, adapta a língua aos seus propósitos expressivos.