domingo, 14 de março de 2021

Concisão: o menos vale mais


           “Quem muito fala muito erra” – diz o ditado. E quem muito escreve, além de também correr o risco de errar, tende a se perder no excesso de palavras. O exagero dessa tendência constitui a verborragia, ou seja, o ato de escrever demais e expressar um mínimo de ideias.

         O oposto da verborragia é a concisão, que se define como a economia de palavras. O poeta Jose Paulo Paes destaca essa qualidade em “Poética”: Conciso? Com siso // Prolixo? Pro lixo.” Jogando com os homônimos, ele afirma que o que é escrito com poucas palavras revela sensatez. E o que tem palavras em excesso (prolixidade é a “demasia ao falar ou escrever”) deve ir para o lixo. O poeta pratica o que defende, pois seu poema não tem mais do que dois versos.

         Um dos maiores desafios para quem escreve é eliminar o entulho verbal. Às vezes o autor tem que escrever duas ou mais versões do texto, sempre cortando, para chegar à simplicidade e à clareza que garantem a comunicação.

          Deparo-me com alguns desses entulhos em redações de alunos e vou tratar de dois deles aqui. O primeiro é a duplicação de palavras. Parece que usar apenas um verbo, ou um substantivo, não satisfaz o redator. É preciso emparelhá-lo com outro, embora nem sempre o resultado seja bom.  

      Por exemplo: “Necessitamos de medidas para ‘preservar’ e ‘cuidar’ do ecossistema”, “O trabalho ‘estimula’ e ‘eleva’ o amor-próprio”, “Nosso sistema carcerário ‘limita’ e ‘inibe’ a reintegração do preso à sociedade”, “Os pais precisam ‘orientar’ e ‘dirigir’ os filhos”, “É preciso manter a ‘atenção’ e o ‘foco’ nas metas”, “O professor deve estimular a ‘solidariedade’ e a ‘união’ do grupo”.

     O propósito do aluno é dar ênfase, mas o que ele consegue é o oposto. Um dos termos, por nada acrescentar ao outro ou estar nele contido, acaba enfraquecendo-o. Na correção deve-se cortar o que tem menor peso semântico. Basta dizer, por exemplo, “Necessitamos ‘preservar’ o ecossistema”. É impossível preservar sem cuidar (que por sinal é um verbo transitivo indireto, de modo que o aluno também cometeu uma falha ao atribuir o mesmo objeto a verbos de regências diferentes). O corte de um dos termos é recomendável em todos os exemplos do parágrafo anterior. Se o leitor tem dúvida, faça o teste.

    O segundo tipo de entulho está representado pelos os lugares-comuns. A farta presença deles nas redações preocupa, pois indica padronização do raciocínio e falta de visão crítica. O lugar-comum, como diz Alcir Pécora, é na verdade, um lugar de ninguém, uma cidade fantasma”.   Dá aos textos um aspecto indiferenciado e os torna previsíveis, sugerindo que foram escritos por um só autor.

          Um dos mais lugares-comuns frequentes é a tal “pergunta que não quer calar”. Outro é “valorizar o ter em detrimento do ser”, infalível quando se trata de criticar os efeitos do consumismo ou da globalização. A “falta de vontade política” é argumento desgastado para justificar a incompetência dos governantes que se tornam insensíveis “à voz rouca das ruas” (esse já martelou muito nossos ouvidos). Se o tema envolve o futuro ou a profissão, são comuns expressões como “priorizar as habilidades”, “manter o foco nas metas” ou agir “com garra e determinação”. Enfim, clichês é que não faltam. Para evitar o abuso vale a pena invocar a sabedoria grega, expressa neste lugar-comum eterno: a virtude está no meio.

            Um bom exercício para aferir o valor da concisão é reescrever provérbios. Costumo levar aos alunos essa prática, que tem de quebra o mérito de fazê-los consultar o dicionário. Leia a reescrita das sentenças que seguem e compare-as com a sua versão proverbial (entre parênteses). A formulação sintética realça a verdade que existe nelas e aumenta o impacto sobre o leitor:

 

1) Cada espécime dos primatas deve permanecer na subdivisão do caule de uma árvore ou arbusto que lhe é devida. (Cada macaco no seu galho.)

2) O Todo-Poderoso presta assistência aos que antes da ocasião própria levantam da cama ao alvorecer. (Deus ajuda quem cedo madruga.)

3) Quem sente grande afeição por alguém de aparência desagradável, desproporcional ou disforme, terá a impressão de que essa pessoa lhe suscita prazer estético. (Quem ama o feio, bonito lhe parece.)

4) Cada indivíduo cujo comportamento ou raciocínio denota alterações patológicas das faculdades mentais cultiva seus hábitos peculiares e obsessivos. (Cada louco com sua mania.)

5) Aquele que não dispõe de um mamífero carnívoro da família dos canídeos persegue animais silvestres para caçar ou matar com um pequeno mamífero carnívoro, doméstico, da família dos felídeos. (Quem não tem cão casa com gato.)

 

        Graciliano Ramos, que é um mestre da tesoura, costumava lembrar que a palavra deve “dizer”, e não servir de preenchimento para compensar o vazio das ideias. Tem razão o autor de “Vidas Secas”. Ser conciso, exato, além de transmitir o essencial demonstra respeito pelo leitor, que não vai perder tempo lendo o que nada lhe acrescenta.

domingo, 24 de janeiro de 2021

Palavras


 Mallarmé escreveu que uma das funções da poesia é compensar as deficiências da língua. A língua é deficiente e imprecisa, entre outras razões, pelo descompasso que há nela entre forma e conteúdo. As palavras não são o que dizem nem dizem o que são. Uma das funções da poesia é tentar corrigir esse desacordo, propiciando aos componentes do léxico a identidade possível entre som e sentido. Na poesia, a palavra não diz; é.

Tem razão o poeta francês. Talvez porque a linguagem verbal não estivesse prevista na Criação, as palavras são vagas e difusas. Não se radicam numa verdade absoluta, não evocam suficientemente os objetos que designam.  Ora estão aquém, ora estão além do que querem significar – e isso vez por outra nos leva a querer... “consertá-las”.

“Mentecapto”, por exemplo, é um caso de forma que não corresponde ao sentido. Devia significar alguma coisa como “um raciocínio capcioso destinado a iludir os outros”: “Está vendo aquele advogado? Não há júri que resista aos seus mentecaptos. Já absolveu não sei quantos réus.”.

         Um advogado desses seria pródigo nos artifícios de retórica. Difícil era escapar de suas “glicínias”, ou ditos espirituosos, que vicejam como “perdigotos (um tipo de praga oriental muito comum na beira do Nilo) em seu “estulto” (o cérebro privilegiado das pessoas inteligentes).

         E “borborigmo”? Não me conformo que signifique o que significa (aquele gorgolejo estomacal que pode estragar um idílio amoroso). Devia ser um tipo de dança africana em que os nativos, entoando loas aos deuses, celebram as colheitas da estação. E tudo ao som de “basbaques”, “zebus” e “catrepilhas” – enquanto o chefe da tribo, vestido com uma “jamanta” (espécie de manto episcopal), incensa com um “penico” (turíbulo primitivo) o corpo dos dançarinos.

          Se as palavras traduzissem o que aparentam, “sarabanda” seria um tipo de erupção que acomete apenas uma nádega: “Tire a mão daí, menino.” “Não posso. Essa coceira do lado direito...”. “Ápice” podia ser um mosquito, um besouro ou, melhor ainda, uma espécie de aeronave moderna e ultrarrápida: “Que chique! Ele chegou num “ápice!”. “Estroina” parece mais  um veneno que, se inalado, provoca uma morte horrível e, o que é pior, desagradável para os outros: o indivíduo morreria soltando “pimbas” e “botos” – enquanto o médico tentaria em vão enfiar um “serelepe” (espécie de pinça com ponta triangular e curva) em sua “forquilha”!

         “Esquálida”, por exemplo, é visivelmente nome de planta – planta ornamental que se enrama graciosamente na parede. Imaginem um jardim formado de “esquálidas”, “honórios” e “piorreias”. E algumas “bufas” exóticas para dar cor local. Seria um luxo digno do mais requintado “alazão” (maometano rico que se dedica à jardinagem por tédio).

         Em meus devaneios musicais, sempre imaginei uma orquestra de “rútilos” tocando os mais variados “estratagemas” (“facúndias”, “capangas”, “vespas”), desses que se fabricavam na Idade Média. Mas nenhum de tais instrumentos teria a graça do “fiofó” (uma espécie de gaita holandesa). Ainda é comum ver nos campos flamengos meninas soprando os “fiofós” com gentileza e graça. Ao lado suas gordas mães, tendo os cabelos envoltos em “mocreias” (longos xales coloridos), batem “rotundos” com pequenos “espasmos” de madeira. O efeito é “perimetral”!

          Ah, nem todas as palavras têm a sorte de “sussurro”, que é aquilo que diz! Pois ninguém fala “sussurro” sem... sussurrar. A maioria tem o triste destino de “escorreito” ou “pudibunda”, que veiculam ideias nobres mas parecem palavrões.          


domingo, 17 de janeiro de 2021

A redação do Enem 2020

 

Muito oportuno o tema do Enem 2020. A doença mental é tradicionalmente vista com preconceito pela sociedade. Considerava-se que os que padeciam de tal enfermidade purgavam um castigo espiritual por infringir algum código sagrado. Ouvi muito dizer, na minha infância, que a depressão era a ausência de Deus.  

A banca se refere a “estigma” para ressaltar o nível de rejeição a que o doente mental está frequentemente sujeito. O estigma é uma marca, um sinal associado ao que é indigno e desonroso. No domínio da religião, designa as marcas aplicadas aos santos em seus corpos como uma forma de penitência. O termo, como se vê, tem uma forte ligação com a ideia de pecado e arrependimento. Ao estigmatizar alguém, tornamo-lo objeto do nosso repúdio. 

Graças à Psicanálise e ao conhecimento da bioquímica do cérebro, essa concepção negativa da doença mental tem mudado. O depressivo não é nenhum pecador, pelo contrário: seu avultado superego torna-o excessivamente atento aos imperativos éticos. Ele sofre com suas culpas em elevada desproporção ao que faz ou deseja. E isso ocorre, em alguma medida, porque em seu cérebro existe a carência de neurotransmissores como a serotonina. O depressivo está doente e precisa ser tratado.   

A despeito de conquistas como as citadas acima, o estigma ainda é forte – por desinformação ou pelo mero propósito de rejeitar quem é diferente. Caberia ao aluno apontar como se manifesta essa marca “na sociedade brasileira”, o que o levaria a comentar aspectos da nossa formação e dos valores (ou antivalores) que regem o nosso comportamento social.

É oportuno lembrar que o momento pelo qual passamos poderia ser apresentado como um exemplo do peso das relações sociais nas doenças da mente. O confinamento e o medo têm levado muitas pessoas a procurar atendimento psicológico. Aumentaram os casos de transtorno de ansiedade e depressão não apenas entre os jovens. Também cresceu a violência doméstica. Incluir na argumentação a pandemia e os seus efeitos constituiria um ponderável reforço argumentativo ao desenvolvimento do tema.

O importante é que o tema escolhido pelo Enem este ano chama a atenção para um aspecto crucial das patologias mentais: a influência da organização social sobre elas. Se muitos indivíduos adoecem, a sociedade também está doente. Caberia ao candidato, na proposta de intervenção, sugerir meios de promover harmonia ao psiquismo das pessoas. Os agentes responsáveis por tal ação não destoariam dos que são comumente elencados nas redações: a família, educando; a escola, instruindo; e o governo, comprometendo-se com a ética e com o amparo aos que, sem condições socioeconômicas, padecem desse tipo de distúrbio.


terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Armadilhas do gerúndio


           O abuso ou o emprego pouco vernáculo do gerúndio, também conhecido por endorreia, é mal antigo em nossa língua. Rodrigues Lapa dá como exemplo dessa prática o uso do gerúndio com o valor de atributo, em frases do tipo: “Recebeu uma caixa contendo (que continha) roupas”. Mas ele não se mostra satisfeito com a correção proposta pelos puristas; vê em “que continha” uma construção artificial, “estilisticamente inferior”, e pondera que “o uso do gerúndio é em certos casos preferível à oração relativa”.

Atualmente a rejeição ao gerúndio deixou de ter por foco o seu emprego como atributo para se concentrar em outro tipo de construção – aquele em que a forma nominal vem antecedida pela dupla “vou estar”. O modismo parece ter se iniciado com os operadores de telemarketing e daí migrado para outras faixas da população.

Esse tipo de construção é de fato ruim e deve ser combatido, pois soa pernóstico em nossa língua o uso de “vou estar” em lugar de “estarei” – um auxiliar determinativo que remete a ação expressa pelo verbo principal ao futuro. Tampouco tem cabimento o emprego do gerúndio se não há ideia de duração ou simultaneidade.       

Quando as ações são simultâneas, o uso da forma nominal antecedida de um auxiliar no futuro é pertinente. Numa frase como “Amanhã, enquanto você estiver no cinema, eu estarei estudando”, o emissor dá a entender que o estudo vai ocorrer ao mesmo tempo que o interlocutor se encontrar na sala de projeção. Caso não haja a noção de simultaneidade, construções como “estarei estudando” e semelhantes podem ser substituídas com vantagem por “irei estudar”, ou mesmo “estudarei”.

Há casos em que o problema com o uso do gerúndio é mais grave. Vai além de clichês ou modismos como os comentados acima – que prejudicam sobretudo o estilo – e afeta os mecanismos estruturais da língua. Isso ocorre, por exemplo, quando o gerúndio introduz uma nova oração.

O desejável, nesse caso, é que o sujeito da oração gerundial seja o mesmo da oração anterior. Numa frase como “Lourenço deixou tarde a casa do pai, seguindo por uma rua escura”, Lourenço é o sujeito tanto do verbo “deixar” quando do gerúndio “seguindo”. Nas situações em que os sujeitos são diferentes, e o emissor não é capaz de explicitar esse fato, o enunciado se torna incoerente.      

Um exemplo disso aparece neste exemplo (retirado, como os que seguem, de redações dos nossos alunos): “A saúde dos fumantes e dos que estão ao seu redor fica debilitada, podendo causar, entre outras doenças, câncer de pulmão.” Pela forma como se estruturou o período, parece que o sujeito de “podendo causar” tem como núcleo “saúde”. Essa interpretação obviamente não tem sentido, pois a causa do câncer de pulmão e de outras doenças não pode ser a saúde dos fumantes e dos que os cercam. O sujeito da locução com o gerúndio é o conteúdo de toda a oração que o antecede, o qual pode ser resumido num anafórico (“isso”, iniciando um novo período; ou “o que”, após uma vírgula). Por exemplo: “A saúde dos fumantes e dos que estão ao seu redor fica debilitada. Isso pode causar, entre outras doenças, câncer de pulmão.”

Outro exemplo de quebra estrutural ocorre nesta passagem: “Os professores não possuem mais a fama de carrascos, facilitando a relação entre eles e os alunos”. Pela forma como o aluno construiu a frase, parece que o sujeito de facilitando é “os professores” e não todo o conteúdo da primeira oração. Ora, é o fato de os professores não mais terem a fama de carrascos que torna fácil a relação entre eles e os alunos. O uso de “o que” daria clareza ao enunciado: “Os professores não possuem mais a fama de carrascos, o que facilita a relação entre eles e os alunos”.

Há casos em que o estudante identifica corretamente os dois sujeitos, mas compromete a legibilidade devido a falha na pontuação: “O ideal é não adotar essa postura de subordinação conciliando o bem-estar com a independência diante dos professores.” Nessa passagem, o sujeito de “conciliando” é o mesmo do infinitivo “adotar”. A oração reduzida equivale a uma oração coordenada (e conciliar), no entanto a ausência da vírgula antes do gerúndio dificulta ao leitor a percepção disso.  

Outro problema grave é a acumulação de gerúndios, que produz períodos longos e mal concatenados. O aluno, às vezes por comodismo, enfileira as orações sem nenhuma preocupação com o nexo que deve existir entre elas. O resultado são períodos confusos e maçantes como o seguinte: “Em regiões pobres as pessoas assistem mais TV do que leem, podendo-se observar que os níveis de desenvolvimento na educação e na cultura não atingem valores significativos, acarretando graves consequências sociais.”

A substituição dos gerúndios por formas desenvolvidas estabelece o nexo entre as orações: “Em regiões pobres as pessoas assistem mais TV do que leem. Pode-se observar que nelas os níveis de desenvolvimento na educação e na cultura não atingem valores significativos, o que acarreta graves consequências sociais.”

Por fim, vale mencionar outra falha também frequente em redações: a presença do gerúndio introduzindo um fragmento de frase. Isso ocorre quando o emissor pretende com a forma nominal complementar um período, mas põe antes dela um ponto. Assim: “Com mais investimentos em educação, o País vai crescer. Diminuindo, assim, o complexo de vira-latas apontado por Nelson Rodrigues.” A oração introduzida pelo verbo “diminuir” parece iniciar um novo período, e não rematar o período anterior. Constitui um fragmento, pois a ela não se acrescenta oração principal. Um dos meios de resolver o problema é transformar o gerúndio em forma desenvolvida: “Com mais investimentos em educação, o País vai crescer. Diminuirá, assim, o complexo de vira-latas apontado por Nelson Rodrigues.”

O emprego abusivo do gerúndio constitui um vício de linguagem. Denota comodismo por parte do emissor, que prefere agrupar sem critério essa forma nominal a proceder à devida flexão do verbo. O leitor estará longe de lhe agradecer por isso.

quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Coisas

 

Dois amigos conversam após a aula de filosofia.    

– Viu que coisa?

– Vi. Achei a aula coisificante!    

– Ele não explicou o que disse que ia explicar.   

– Pois é. O conceito kantiano da...

– Isso! Da “coisa em si”!    

– “O que está além da representação, inacessível ao intelecto e aos sentidos”. Esse era o espírito da coisa, mas terminei sem entender bulhufas.

– Ele poderia ter explorado mais a noção de “coisidade” da coisa. Ou mesmo de alienação, apelando dialeticamente para Marx.

– Marx?! Não misture as coisas.

– Sei que o tema é complexo, mas com algum esforço ele talvez conseguisse.  

– Talvez. A coisa só não foi pior porque ele acabou reconhecendo a falha. Essa foi para mim a melhor coisa da noite: o seu reconhecimento de que não é lá grande coisa.

– Também não humilhe o homem... Isso é coisa de ressentido.

– Ressentido coisa nenhuma.

– Não podemos julgar o professor apenas por esse erro. Cada coisa tem sua medida, não é certo extrapolar.

 –Tá bom. Mas saiba uma coisa: se aquilo se repetir, eu pego uma coisa da sala e jogo nele. 

– Que coisa?

– Uma bem pesada, claro.   

–Tolice. Isso não é coisa que se faça. Ele tem o seu valor.

– Tinha! Veja como são as coisas: não faz muito tempo ele era o tuxaua, uma "coisa" em termos de filosofia. E agora?

– Mas ele vai se reabilitar. Se há uma coisa certa neste mundo, é que um dia se segue ao outro.

– Se reabilitar como? Fazendo o quê?

– Sei lá. Qualquer coisa que nos leve de novo a confiar nele.

– E qual seria?

– Aí é que está a coisa: cabe a ele descobrir.

– Desconfio de que não conseguirá.    

– Por quê? Você está com má vontade... Pegue suas coisas e vamos embora.

– Já vou. Mas tem uma coisa: se ele não se reabilitar, vou passar isso na sua cara. Você está defendendo demais aquele coisa-ruim. Parece até que há... alguma coisa entre vocês dois.

Vamos embora, antes que eu me irrite! Você já não está falando coisa com coisa!

A nota

 O maior risco da interpretação é o intérprete ver no texto o que ele não tem. A essa prática dá-se o nome de superinterpretação, que não se confunde com o preciosismo. O preciosismo é o hábito de usar palavras “difíceis” para disfarçar a ausência de conteúdo (palavras demais, como se sabe, correspondem a ideias de menos).

            Já a superinterpretação diz respeito ao leitor, que vai além do que está dito. Vislumbra intenções, sutilezas, duplos sentidos onde muitas vezes não há mais do que mediocridade semântica. Quando o criticam, diz que o texto é uma obra aberta (só que ele tenta abri-la demais!).

            A superinterpretação pode ocorrer de boa ou de má-fe. Um exemplo do segundo caso é a correção que certo professor fez ao texto de um estudante que “precisava passar”. O tema da redação era “a amizade”, e o aluno escreveu apenas o seguinte: “Num tô afim de falá disso agora, pô. Tô sem ninguém.”

            O mestre lhe deu 9,0. Convocado à diretoria para se explicar, redigiu o seguinte comentário:

 

             O texto é sintético, ou seja, não revela o pecado da verborragia. A economia de meios expressivos se constitui num importante fator de coerência, pois o excesso de palavras não combinaria com a resolução do aluno em não escrever. Essa atitude de recusa, em que se percebe um misto de tédio e rebeldia, determina o minimalismo que orienta toda a redação.

            Vejamos algumas provas disso. O advérbio “não” é trocado por “num”, bem mais incisivo devido à ausência do ditongo. Com um “não” é possível negociar; com um “‘num” (abusado e peremptório), jamais. Merece também realce a troca de “estou” por “tô”, em que a aférese (supressão de fonemas iniciais) reforça a propensão ao tartamudo, ao pontual, ao monossilábico, própria de quem não quer muita conversa.

             A seguir vem uma infração à norma culta que, no entanto, se torna funcional no contexto de rejeição instaurado desde as primeiras linhas. A troca de “a fim” por “afim” (um erro de morfologia) justifica-se pela intenção de condensar o sentido dos homônimos. É como se o valor de finalidade contido na locução prepositiva se enlaçasse à ideia de afinidade presente no adjetivo, numa espécie de fusão fonossemântica que procura destacar a indisposição afetiva. O aluno parece dizer, com ceticismo: “Não estou a fim de um afim”, dando a entender que se cansou de procurar um amigo.

            O ceticismo também explica a forma verbal “falá”, pois a presença do “r” sugeriria uma vibração em nada condizente com o ânimo do autor (de uma seca e exasperada contundência). Tal ânimo se confirma no uso do monossílabo de teor exclamativo que aparece no fim do período: “pô”. Esse “pô”, com apócope (omissão de fonemas finais), acentua a dramaticidade da negativa.

             No segundo período repete-se a aférese (tô), mas agora seguida por uma expressão em português correto (sem ninguém). Nessa parte do texto, de um confessionalismo despojado, o estudante explica suas razões. Percebemos que as omissões e os deslizes se deveram a ele estar sozinho e, nesse estado, não ver sentido em escrever sobre a amizade. Compreendemos então que a recusa foi determinada por razões existenciais, que encontraram um correlato perfeito nas escolhas linguísticas.

          Essa é a explicação para a nota que lhe dei.

 

           O aluno passou. O professor, claro, perdeu o emprego. Algum tempo depois, foi contratado pelo jornal da situação. Dizem que sua função no periódico é fazer a crítica dos poemas do governador.

Notas sobre a voz passiva

 

Há manuais de redação que rejeitam o uso da voz passiva. Orientam que se diga, por exemplo, “O diretor suspendeu os alunos”, em vez de “Os alunos foram suspensos pelo diretor”. Existem casos, no entanto, em que a passiva é desejável. Nem sempre interessa ao redator afirmar que alguém faz alguma coisa. Ele pode querer dizer que alguma coisa “é feita”, destacando o termo que sofre a ação. Afirmar “o livro foi lido em pouco tempo pela turma” não é o mesmo que dizer “a turma leu o livro em pouco tempo”. No primeiro caso o foco recai no livro; no segundo, recai na turma.

Segundo Steven Pinker, “muitas vezes o escritor precisa desviar a atenção do leitor para longe do agente de uma ação. A voz passiva lhe dá essa possibilidade” (“Guia de escrita”, p. 75, Contexto). Por exemplo: “Quem não estiver de farda será proibido de entrar.” Proibido por quem? A passiva é um meio de camuflar o responsável por essa antipática interdição.

O propósito de esconder o agente pode se dever também a modéstia. Na apresentação de uma monografia, o autor tende a escrever: “Um enorme tempo foi gasto para levantar as fontes”. A passiva é um meio de ele “disfarçar” que dedicou muito tempo à tarefa. Outra forma seria usar o “plural da modéstia”, que também é uma forma de atenuar o egocentrismo (“Gastamos” um tempo enorme para levantar as fontes). Mas nesse caso o foco não mais estaria no tempo despendido.   

Omitindo o agente da ação, corre-se o risco de dar ao leitor uma falsa ideia de quem a pratica. É o que ocorre nesta passagem da redação de um aluno: “No texto Cortina de Burrice, de Cláudio de Moura e Castro, é feita uma comparação entre a sociedade brasileira e a europeia.”

O estudante dá a entender que a comparação entre a sociedade brasileira e a europeia é feita por outra pessoa, e não pelo próprio Cláudio de Moura e Castro. Ele não correria esse risco se tivesse optado pela voz ativa: “No texto Cortina de Burrice, Cláudio de Moura e Castro faz uma comparação entre a sociedade brasileira e a europeia.”

Vale a pena lembrar que a manutenção da voz concorre para a unidade do texto. Se a voz ativa aparece na primeira oração, é desejável que também apareça na(s) seguinte(s). O efeito é muito ruim quando isso não ocorre. Veja: “Os bandidos destruíram as evidências do crime e novas provas foram forjadas.” Se o sujeito é o mesmo (os bandidos), por que mudar a voz? É mais prático e direto dizer: “Os bandidos destruíram as evidências do crime e forjaram novas provas.” 

A voz passiva analítica (feita com verbo auxiliar) deve ser usada com parcimônia. Seu exagero tende a dificultar a leitura devido ao excesso de locuções. O prejuízo para o estilo é grande. Confira neste exemplo: “Foi feita” uma pesquisa para sondar a preferência dos homens quanto às mulheres com quem gostariam de “ser casados”. “Foram rejeitadas” por grande parte deles as liberais, as muito bonitas e as que já tinham filhos de outros casamentos.

O ideal, em casos como esse, é optar pela voz passiva sintética (com o pronome “se”) ou pela voz ativa, em que é natural a ordem direta. O texto melhora muito com as modificações: “Fez-se” uma pesquisa para sondar a preferência dos homens quanto às mulheres com quem gostariam de “se casar”. Grande parte deles “rejeitou” as liberais, as muito bonitas e as que já tinham filhos de outros casamentos.

Antes de encerrar estas notas, chamo a atenção para uma escolha bizarra que por vezes aparece nas redações. Trata-se de uma espécie de cruzamento entre a voz passiva analítica e a sintética. Pincei de outro aluno este exemplo: “Não é novidade dizer que no Brasil não se é cumprida as leis ambientais.” “Não se é cumprida”? Isso não existe em português. O aluno deveria dizer que as leis ou “não são cumpridas”, ou “não se cumprem”.

         Como se vê, não há motivo para rejeitar de antemão a voz passiva. O importante, como em toda escolha linguística, é atentar para a pertinência do seu emprego. Redige bem aquele que, imune a interdições preconceituosas, adapta a língua aos seus propósitos expressivos.