O maior risco da interpretação é o intérprete ver no texto o que ele não tem. A essa prática dá-se o nome de superinterpretação, que não se confunde com o preciosismo. O preciosismo é o hábito de usar palavras “difíceis” para disfarçar a ausência de conteúdo (palavras demais, como se sabe, correspondem a ideias de menos).
Já a superinterpretação diz
respeito ao leitor, que vai além do que está dito. Vislumbra intenções, sutilezas,
duplos sentidos onde muitas vezes não há mais do que mediocridade semântica. Quando
o criticam, diz que o texto é uma obra aberta (só que ele tenta abri-la
demais!).
A superinterpretação pode ocorrer
de boa ou de má-fe. Um exemplo do segundo caso é a correção que certo professor
fez ao texto de um estudante que “precisava passar”. O tema da redação era “a
amizade”, e o aluno escreveu apenas o seguinte: “Num tô afim de falá disso
agora, pô. Tô sem ninguém.”
O mestre lhe deu 9,0. Convocado à diretoria
para se explicar, redigiu o seguinte comentário:
O texto é sintético, ou seja, não revela
o pecado da verborragia. A economia de meios expressivos se constitui num importante
fator de coerência, pois o excesso de palavras não combinaria com a resolução
do aluno em não escrever. Essa atitude de recusa, em que se percebe um misto de
tédio e rebeldia, determina o minimalismo que orienta toda a redação.
Vejamos algumas provas disso. O
advérbio “não” é trocado por “num”, bem mais incisivo devido à ausência do ditongo.
Com um “não” é possível negociar; com um “‘num” (abusado e peremptório), jamais.
Merece também realce a troca de “estou” por “tô”, em que a aférese (supressão
de fonemas iniciais) reforça a propensão ao tartamudo, ao pontual, ao monossilábico,
própria de quem não quer muita conversa.
A seguir vem uma infração à norma
culta que, no entanto, se torna funcional no contexto de rejeição instaurado desde
as primeiras linhas. A troca de “a fim” por “afim” (um erro de morfologia) justifica-se
pela intenção de condensar o sentido dos homônimos. É como se o valor de finalidade
contido na locução prepositiva se enlaçasse à ideia de afinidade presente no
adjetivo, numa espécie de fusão fonossemântica que procura destacar a
indisposição afetiva. O aluno parece dizer, com ceticismo: “Não estou a fim de
um afim”, dando a entender que se cansou de procurar um amigo.
O ceticismo também explica a forma
verbal “falá”, pois a presença do “r” sugeriria uma vibração em nada condizente
com o ânimo do autor (de uma seca e exasperada contundência). Tal ânimo se
confirma no uso do monossílabo de teor exclamativo que aparece no fim do período:
“pô”. Esse “pô”, com apócope (omissão de fonemas finais), acentua a
dramaticidade da negativa.
No segundo período repete-se a
aférese (tô), mas agora seguida por uma expressão em português correto (sem
ninguém). Nessa parte do texto, de um confessionalismo despojado, o estudante explica
suas razões. Percebemos que as omissões e os deslizes se deveram a ele estar
sozinho e, nesse estado, não ver sentido em escrever sobre a amizade. Compreendemos
então que a recusa foi determinada por razões existenciais, que encontraram um
correlato perfeito nas escolhas linguísticas.
Essa é a explicação para a nota que
lhe dei.
O aluno passou. O professor, claro, perdeu o emprego. Algum tempo depois, foi contratado pelo jornal da situação. Dizem que sua função no periódico é fazer a crítica dos poemas do governador.
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