quinta-feira, 26 de novembro de 2020

A nota

 O maior risco da interpretação é o intérprete ver no texto o que ele não tem. A essa prática dá-se o nome de superinterpretação, que não se confunde com o preciosismo. O preciosismo é o hábito de usar palavras “difíceis” para disfarçar a ausência de conteúdo (palavras demais, como se sabe, correspondem a ideias de menos).

            Já a superinterpretação diz respeito ao leitor, que vai além do que está dito. Vislumbra intenções, sutilezas, duplos sentidos onde muitas vezes não há mais do que mediocridade semântica. Quando o criticam, diz que o texto é uma obra aberta (só que ele tenta abri-la demais!).

            A superinterpretação pode ocorrer de boa ou de má-fe. Um exemplo do segundo caso é a correção que certo professor fez ao texto de um estudante que “precisava passar”. O tema da redação era “a amizade”, e o aluno escreveu apenas o seguinte: “Num tô afim de falá disso agora, pô. Tô sem ninguém.”

            O mestre lhe deu 9,0. Convocado à diretoria para se explicar, redigiu o seguinte comentário:

 

             O texto é sintético, ou seja, não revela o pecado da verborragia. A economia de meios expressivos se constitui num importante fator de coerência, pois o excesso de palavras não combinaria com a resolução do aluno em não escrever. Essa atitude de recusa, em que se percebe um misto de tédio e rebeldia, determina o minimalismo que orienta toda a redação.

            Vejamos algumas provas disso. O advérbio “não” é trocado por “num”, bem mais incisivo devido à ausência do ditongo. Com um “não” é possível negociar; com um “‘num” (abusado e peremptório), jamais. Merece também realce a troca de “estou” por “tô”, em que a aférese (supressão de fonemas iniciais) reforça a propensão ao tartamudo, ao pontual, ao monossilábico, própria de quem não quer muita conversa.

             A seguir vem uma infração à norma culta que, no entanto, se torna funcional no contexto de rejeição instaurado desde as primeiras linhas. A troca de “a fim” por “afim” (um erro de morfologia) justifica-se pela intenção de condensar o sentido dos homônimos. É como se o valor de finalidade contido na locução prepositiva se enlaçasse à ideia de afinidade presente no adjetivo, numa espécie de fusão fonossemântica que procura destacar a indisposição afetiva. O aluno parece dizer, com ceticismo: “Não estou a fim de um afim”, dando a entender que se cansou de procurar um amigo.

            O ceticismo também explica a forma verbal “falá”, pois a presença do “r” sugeriria uma vibração em nada condizente com o ânimo do autor (de uma seca e exasperada contundência). Tal ânimo se confirma no uso do monossílabo de teor exclamativo que aparece no fim do período: “pô”. Esse “pô”, com apócope (omissão de fonemas finais), acentua a dramaticidade da negativa.

             No segundo período repete-se a aférese (tô), mas agora seguida por uma expressão em português correto (sem ninguém). Nessa parte do texto, de um confessionalismo despojado, o estudante explica suas razões. Percebemos que as omissões e os deslizes se deveram a ele estar sozinho e, nesse estado, não ver sentido em escrever sobre a amizade. Compreendemos então que a recusa foi determinada por razões existenciais, que encontraram um correlato perfeito nas escolhas linguísticas.

          Essa é a explicação para a nota que lhe dei.

 

           O aluno passou. O professor, claro, perdeu o emprego. Algum tempo depois, foi contratado pelo jornal da situação. Dizem que sua função no periódico é fazer a crítica dos poemas do governador.

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