domingo, 24 de janeiro de 2021

Palavras


 Mallarmé escreveu que uma das funções da poesia é compensar as deficiências da língua. A língua é deficiente e imprecisa, entre outras razões, pelo descompasso que há nela entre forma e conteúdo. As palavras não são o que dizem nem dizem o que são. Uma das funções da poesia é tentar corrigir esse desacordo, propiciando aos componentes do léxico a identidade possível entre som e sentido. Na poesia, a palavra não diz; é.

Tem razão o poeta francês. Talvez porque a linguagem verbal não estivesse prevista na Criação, as palavras são vagas e difusas. Não se radicam numa verdade absoluta, não evocam suficientemente os objetos que designam.  Ora estão aquém, ora estão além do que querem significar – e isso vez por outra nos leva a querer... “consertá-las”.

“Mentecapto”, por exemplo, é um caso de forma que não corresponde ao sentido. Devia significar alguma coisa como “um raciocínio capcioso destinado a iludir os outros”: “Está vendo aquele advogado? Não há júri que resista aos seus mentecaptos. Já absolveu não sei quantos réus.”.

         Um advogado desses seria pródigo nos artifícios de retórica. Difícil era escapar de suas “glicínias”, ou ditos espirituosos, que vicejam como “perdigotos (um tipo de praga oriental muito comum na beira do Nilo) em seu “estulto” (o cérebro privilegiado das pessoas inteligentes).

         E “borborigmo”? Não me conformo que signifique o que significa (aquele gorgolejo estomacal que pode estragar um idílio amoroso). Devia ser um tipo de dança africana em que os nativos, entoando loas aos deuses, celebram as colheitas da estação. E tudo ao som de “basbaques”, “zebus” e “catrepilhas” – enquanto o chefe da tribo, vestido com uma “jamanta” (espécie de manto episcopal), incensa com um “penico” (turíbulo primitivo) o corpo dos dançarinos.

          Se as palavras traduzissem o que aparentam, “sarabanda” seria um tipo de erupção que acomete apenas uma nádega: “Tire a mão daí, menino.” “Não posso. Essa coceira do lado direito...”. “Ápice” podia ser um mosquito, um besouro ou, melhor ainda, uma espécie de aeronave moderna e ultrarrápida: “Que chique! Ele chegou num “ápice!”. “Estroina” parece mais  um veneno que, se inalado, provoca uma morte horrível e, o que é pior, desagradável para os outros: o indivíduo morreria soltando “pimbas” e “botos” – enquanto o médico tentaria em vão enfiar um “serelepe” (espécie de pinça com ponta triangular e curva) em sua “forquilha”!

         “Esquálida”, por exemplo, é visivelmente nome de planta – planta ornamental que se enrama graciosamente na parede. Imaginem um jardim formado de “esquálidas”, “honórios” e “piorreias”. E algumas “bufas” exóticas para dar cor local. Seria um luxo digno do mais requintado “alazão” (maometano rico que se dedica à jardinagem por tédio).

         Em meus devaneios musicais, sempre imaginei uma orquestra de “rútilos” tocando os mais variados “estratagemas” (“facúndias”, “capangas”, “vespas”), desses que se fabricavam na Idade Média. Mas nenhum de tais instrumentos teria a graça do “fiofó” (uma espécie de gaita holandesa). Ainda é comum ver nos campos flamengos meninas soprando os “fiofós” com gentileza e graça. Ao lado suas gordas mães, tendo os cabelos envoltos em “mocreias” (longos xales coloridos), batem “rotundos” com pequenos “espasmos” de madeira. O efeito é “perimetral”!

          Ah, nem todas as palavras têm a sorte de “sussurro”, que é aquilo que diz! Pois ninguém fala “sussurro” sem... sussurrar. A maioria tem o triste destino de “escorreito” ou “pudibunda”, que veiculam ideias nobres mas parecem palavrões.          


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