A Internet era uma das apostas dos
professores para a redação do Enem 2018. A dúvida estava em qual aspecto da WEB
a banca poderia enfocar; em 2011, por exemplo, ela abordou o desafio de manter
a privacidade num universo em que são tênues os limites entre o público e o
privado. Desta vez, solicitou que os candidatos se posicionassem sobre a manipulação do
comportamento dos usuários pelo controle dos dados que circulam na Rede.
O tema não poderia ser mais atual e
oportuno. A imprensa tem noticiado com bastante frequência ações que atestam
essa manipulação. Seja pela invasão de hackers, seja pela seleção de algoritmos
que privilegiam ideologias ou produtos, grandes conglomerados do setor de
informática buscam selecionar o que deve e o que não deve chegar aos usuários.
Essa atitude, que é um misto de censura e publicidade enganosa, tem colocado em
xeque a legitimidade da Web como instrumento da globalização. Ao mesmo tempo acena
com a possibilidade de que, se esse processo não for detido, os internautas
acabem se transformando em bonecos sem consciência nem vontade.
Como sugestões para o desenvolvimento do
tema, a banca apresentava quatro textos motivadores – sendo o terceiro um
quadro demonstrativo do largo uso da internet, por jovens e adultos, para funções
as mais diversas. Nos três outros, expõem-se diferentes aspectos da manipulação.
O primeiro descreve o mecanismo pelo qual se selecionam os produtos enviados a
usuários de um serviço de música digital. Um algoritmo fundado em preferências
iniciais praticamente determina as escolhas futuras, de modo que se tira do
cliente qualquer possibilidade de opção. Ele pensa que é livre, mas seu gosto
está determinado.
No texto 2 repete-se o alerta, que se
dirige agora aos usuários das redes sociais. Os dados a que eles têm acesso são
filtrados por um “exército de moderadores” que controlam aquilo que deve ser
eliminado (a propósito, você escolhe mesmo os amigos com quem se relaciona no
Facebook? Por que só as mesmas pessoas recebem e curtem suas postagens?). Os algoritmos
decidem o que você pode dizer aos seus seguidores; eles opinam por você. Como às
opiniões corresponde uma identidade, eles acabam tomando o seu lugar no mundo (esse
parece ser o propósito inconfesso da Inteligência Artificial!).
Os alertas quanto à possibilidade de manipulação
se completam no texto 3, que aborda os tópicos de notícia selecionados para
chegar até o usuário. Tal seleção põe em dúvida a relevância desses tópicos para
a tomada de decisões. Pensamos conhecer os principais aspectos de um problema (por
exemplo, os efeitos da imigração na economia de um país), mas deles conhecemos
apena uma parte. Isso evidentemente compromete a natureza das nossas decisões,
que podem muitas vezes ser injustas.
Uma dúvida dos estudantes é se era
pertinente abordar as fake news sem fugir ao tema. A meu ver, sim. O importante
era não limitar a abordagem às “notícias falsas”. As fake news manipulam
dados, e na linguagem da informática dado é tudo que entra no sistema – de traços
emocionais a fatos ou comportamentos que tendem a se repetir. O computador os
analisa e extrai deles determinados padrões (os chamados algoritmos). A partir
daí é possível promover manipulações que venham deturpar a compreensão do
passado e condicionar ações futuras (como a vitória numa eleição).
Possuir dados significa ter poder, pois a partir deles torna-se possível
elaborar algoritmos que preveem e determinam escolhas não apenas individuais
como também coletivas. Essa prática, denominada dataísmo, é longamente
discutida por Yuval Noah Harari em
“Homo Deus” (de quem, a propósito, apresentamos em um dos nossos Simulados uma
passagem retirada do best-seller “Sapiens; uma breve história da humanidade”).
Segundo Harari, a base do dataísmo
é o reconhecimento, promovido pela biologia e pela ciência da computação, de
que “organismos são algoritmos e de que girafas, tomates e seres humanos são
apenas métodos diferentes de processamento de dados” (p. 371). Esse ponto de vista tem hoje um largo respaldo científico.
Diante disso, não há por que num tema como a manipulação de dados pela
internet deixar de fazer menção às fake news, que buscam confundir a percepção
que as pessoas têm da realidade e, por meio disso, “dominar” suas escolhas. As
notícias falsas não esgotam as possibilidades de manipulação, repito, mas
constituem um bom exemplo de como é possível destruir (ou enobrecer) a imagem
de pessoas e instituições a fim de mudar o conceito que se tem delas.
O fato de as fake news não terem sido realçadas nos textos motivadores não significa que o candidato devesse desprezá-las. Como o nome o diz, os fragmentos da coletânea visam motivar e não apresentar tópicos exclusivos; fica a critério do candidato explorar outros que também sejam relevantes.
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