terça-feira, 27 de novembro de 2018

Sem querer, querendo


                (influências semânticas na escolha dos parônimos)
 
                Um dos problemas graves em redações de vestibulandos é a falta de rigor no emprego das palavras. As falhas por inexatidão de sentido prejudicam a coerência e, nos casos em que constituem repetições indevidas, comprometem a progressão do texto. Em razão delas geram-se enunciados contraditórios e por vezes ininteligíveis. A impressão que se tem é a de que o aluno ouviu o galo cantar, mas não soube onde, tal a distância entre a palavra escolhida e a ideia que ele queria transmitir.
         Um dos fatores que concorrem para isso é a escolha errada entre dois parônimos. Parônimas, como se sabe, são palavras que se assemelham pela pronúncia. As gramáticas citam exemplos como os de “infligir e infringir”, “intemerato e intimorato”, “eminente e iminente”; nesses pares, a semelhança fônica faz com que não raro se troque um dos vocábulos pelo outro.
         A análise das redações, quanto a esse aspecto, nos leva a uma interessante constatação: os parônimos tanto induzem ao erro, quanto aparecem como alternativas para suprir o vazio de um pensamento que não encontra a sua forma. O que o aluno escreveria, por exemplo, se não lhe ocorresse usar “consistência” em lugar de “constância” numa frase como “É preciso evitar a consistência com que isso ocorre”?
            Dificilmente optaria por um termo mais preciso, como “frequência”; o mais provável é que não formulasse o juízo que formulou. A existência do parônimo se constitui num recurso para que ele tenha dito o que disse, abeirando-se muitas vezes do sentido adequado. A semelhança sonora entre os vocábulos demonstra que ele tinha uma vaga ideia do que “constância” significa -- tanto que pensou estar usando essa palavra quando escolheu a outra.
             O uso inadequado dos parônimos decorre basicamente de uma confusão formal, mas isso não significa que o fator semântico não concorra para a troca dos termos. Nesse ponto ocorre o oposto do que acontece nos tradicionais equívocos apontados pela gramática.
            Quem troca “infligir” por “infringir” não o faz sugestionado por um vínculo de sentido. Pelo contrário, não há nenhuma relação entre essas palavras. Já entre “constância” e “consistência” parece haver um parentesco metonímico; quem é constante, afinal de contas, demonstra alguma consistência interior.

         O mesmo ocorre nas passagens abaixo, retiradas também de redações de nossos alunos:
          “Estas indagações são feitas pela sociedade, que muitas vezes se contradiz ao avanço da medicina”; “São pais antiquários, que prendem demais os filhos”; “A força da moda encucou nos consumidores esse padrão por ela estabelecido”; Ninguém é capaz de transformar algo tão nobre e verdadeiro em algo maquinário”.
As trocas às vezes têm efeito paradoxal ou cômico.  Ao confundir “constância” com “consistência”, no contexto da frase citada, o aluno atribui valor a algo que pretende evitar. O que é consistente não deve em princípio ser rejeitado, ou seja, a escolha da palavra indevida gerou uma falha de coerência.
            Não é preciso ser “antiquário” (“vender ou colecionar antiguidades”) para prender muito os filhos; geralmente quem faz isso são os pais caretas, antiquados, que se recusam a acompanhar a evolução dos tempos. Mas não há dúvida de que existe um elo semântico entre as duas palavras; os antiquários lidam com objetos antigos, e para o jovem “antiguidade” e “caretice” muitas vezes se equivalem. 
             É frequente a troca de “contradiz” por “contrapõe”, e do verbo “inculcar” por “encucar” (esse último vocábulo, por sinal, está muito próximo do universo dos adolescentes). O curioso, nessa troca vocabular, é que é a ideia de “meter na cuca” (cabeça) não está longe do sentido pretendido pelo aluno, que se refere à “lavagem cerebral” promovida pela moda. Já o termo “maquinário”, transformado em adjetivo, constitui uma extensão indevida de “maquinal.”
            É preciso distinguir os exemplos acima daqueles em que o mau emprego das palavras não se deve à semelhança sonora. Nesses casos o aluno erra mesmo por desconhecimento do sentido. Eis alguns exemplos:
(a) “Depois de tal episódio, pude contemplar o quanto o álcool é prejudicial”; (b) “A adolescência é uma fase da vida cheia de descobertas e libertações, mas também compactuada com sérios temores”; (c) “...devemos sempre avaliar o que está em nossa volta antes de tomar nossas próprias conclusões”; (d) “A geração e valorização do emprego local seria um bom começo para melhorar essa necessidade”; (e) “O contato interpessoal nos faz adquirir tolerância em relação ao próximo e suas vicissitudes”.
Haveria adequação se em vez de “contemplar” o aluno tivesse escrito  perceber”, palavra mais ajustada ao contexto. A adolescência é comprometida (e não “compactuada”) por sérios temores. E desde quando é possível “tomar conclusões”? Tirar conclusões é o certo. Uma necessidade não se melhora -- se atende (atenua ou desfaz). “Vicissitudes” aplica-se a situações e não a pessoas; a estas, o termo que cabe é “idiossincrasias”.
           Os erros decorrentes de parônimos mal empregados, como se vê, são diferentes dos que aparecem nas passagens acima. Indicam não propriamente ignorância, mas insuficiência na leitura e pouca habilidade para discernir entre conteúdos semânticos de alguma forma aparentados. A percepção de um elo entre a forma escolhida e a que o aluno queria expressar mostra que ele fica a meio caminho entre o acerto e o erro, e muitas vezes tem uma vaga noção do que pretendia dizer.
         Um dos desafios para quem ensina redação é levá-lo a perceber as razões dessa troca, explicitando o vínculo entre as duas formas em jogo. A partir daí será possível melhorar seu desempenho como leitor e produtor de textos.
                                                                
Chico Viana é doutor em Teoria da Literatura pela UFRJ e professor de redação no curso que leva o seu nome.    (www.chicoviana.com -     viacor@uol.com.br)
(Publicado no n. 23 da revista Língua Portuguesa - Conhecimento prático, da Escala Educacional)

segunda-feira, 19 de novembro de 2018

Muito tititi pra pouco pajubá


Uma questão do Enem tem sido muito criticada por fazer menção ao pajubá, dialeto secreto usado por gays e travestis. No comando, a banca apresenta uma frase nesse dialeto e dá outras informações, como as de que ele é usado em situações informais e já constitui objeto de um dicionário.
Na questão não se especifica o sentido de nenhuma palavra do dialeto, pois o propósito não é explicá-lo mas sim apresentá-lo como um conjunto específico de variantes ligadas a determinado grupo. O grupo enfocado poderia ser qualquer outro – jovens, marinheiros, marginais, enfim, qualquer um que tenha a sua linguagem cifrada. Diante disso, o aluno poderia responder a questão sem conhecer nenhum termo vinculado ao universo dos gays ou dos travestis.
Por sinal, quem tem vulgarizado esses termos são os críticos, que estão despertando a curiosidade das pessoas justamente para aquilo que em tese desejam proibir. Foi através de um vídeo furibundo contra a prova, por exemplo, que muita gente ficou sabendo o que significa “acué” e “picumã”.
A garotada deveria passar ao largo desses termos e se deter no conceito linguístico de dialeto. Se algum reparo se deve fazer, é à ênfase que o Enem tem dado a classificações e tipologias (algumas polêmicas) em detrimento da avaliação dos recursos linguísticos que articulam os componentes textuais.

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

O tema de redação do Enem 2018


A Internet era uma das apostas dos professores para a redação do Enem 2018. A dúvida estava em qual aspecto da WEB a banca poderia enfocar; em 2011, por exemplo, ela abordou o desafio de manter a privacidade num universo em que são tênues os limites entre o público e o privado. Desta vez, solicitou que os candidatos se posicionassem sobre a manipulação do comportamento dos usuários pelo controle dos dados que circulam na Rede.  
O tema não poderia ser mais atual e oportuno. A imprensa tem noticiado com bastante frequência ações que atestam essa manipulação. Seja pela invasão de hackers, seja pela seleção de algoritmos que privilegiam ideologias ou produtos, grandes conglomerados do setor de informática buscam selecionar o que deve e o que não deve chegar aos usuários. Essa atitude, que é um misto de censura e publicidade enganosa, tem colocado em xeque a legitimidade da Web como instrumento da globalização. Ao mesmo tempo acena com a possibilidade de que, se esse processo não for detido, os internautas acabem se transformando em bonecos sem consciência nem vontade.
Como sugestões para o desenvolvimento do tema, a banca apresentava quatro textos motivadores – sendo o terceiro um quadro demonstrativo do largo uso da internet, por jovens e adultos, para funções as mais diversas. Nos três outros, expõem-se diferentes aspectos da manipulação. O primeiro descreve o mecanismo pelo qual se selecionam os produtos enviados a usuários de um serviço de música digital. Um algoritmo fundado em preferências iniciais praticamente determina as escolhas futuras, de modo que se tira do cliente qualquer possibilidade de opção. Ele pensa que é livre, mas seu gosto está determinado.
No texto 2 repete-se o alerta, que se dirige agora aos usuários das redes sociais. Os dados a que eles têm acesso são filtrados por um “exército de moderadores” que controlam aquilo que deve ser eliminado (a propósito, você escolhe mesmo os amigos com quem se relaciona no Facebook? Por que só as mesmas pessoas recebem e curtem suas postagens?). Os algoritmos decidem o que você pode dizer aos seus seguidores; eles opinam por você. Como às opiniões corresponde uma identidade, eles acabam tomando o seu lugar no mundo (esse parece ser o propósito inconfesso da Inteligência Artificial!).  
Os alertas quanto à possibilidade de manipulação se completam no texto 3, que aborda os tópicos de notícia selecionados para chegar até o usuário. Tal seleção põe em dúvida a relevância desses tópicos para a tomada de decisões. Pensamos conhecer os principais aspectos de um problema (por exemplo, os efeitos da imigração na economia de um país), mas deles conhecemos apena uma parte. Isso evidentemente compromete a natureza das nossas decisões, que podem muitas vezes ser injustas.
Uma dúvida dos estudantes é se era pertinente abordar as fake news sem fugir ao tema. A meu ver, sim. O importante era não limitar a abordagem às “notícias falsas”.  As fake news manipulam dados, e na linguagem da informática dado é tudo que entra no sistema – de traços emocionais a fatos ou comportamentos que tendem a se repetir. O computador os analisa e extrai deles determinados padrões (os chamados algoritmos). A partir daí é possível promover manipulações que venham deturpar a compreensão do passado e condicionar ações futuras (como a vitória numa eleição).  
Possuir dados significa ter poder, pois a partir deles torna-se possível elaborar algoritmos que preveem e determinam escolhas não apenas individuais como também coletivas. Essa prática, denominada dataísmo, é longamente discutida por Yuval Noah Harari em ahH “Homo Deus” (de quem, a propósito, apresentamos em um dos nossos Simulados uma passagem retirada do best-seller “Sapiens; uma breve história da humanidade”).  
            Segundo Harari, a base do dataísmo é o reconhecimento, promovido pela biologia e pela ciência da computação, de que “organismos são algoritmos e de que girafas, tomates e seres humanos são apenas métodos diferentes de processamento de dados” (p. 371). Esse ponto de vista tem hoje um largo respaldo científico.
Diante disso, não há por que num tema como a manipulação de dados pela internet deixar de fazer menção às fake news, que buscam confundir a percepção que as pessoas têm da realidade e, por meio disso, “dominar” suas escolhas. As notícias falsas não esgotam as possibilidades de manipulação, repito, mas constituem um bom exemplo de como é possível destruir (ou enobrecer) a imagem de pessoas e instituições a fim de mudar o conceito que se tem delas.
O fato de as fake news não terem sido realçadas nos textos motivadores não significa que o candidato devesse desprezá-las. Como o nome o diz, os fragmentos da coletânea visam motivar e não apresentar tópicos exclusivos; fica a critério do candidato explorar outros que também sejam relevantes.