quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Coisas

 

Dois amigos conversam após a aula de filosofia.    

– Viu que coisa?

– Vi. Achei a aula coisificante!    

– Ele não explicou o que disse que ia explicar.   

– Pois é. O conceito kantiano da...

– Isso! Da “coisa em si”!    

– “O que está além da representação, inacessível ao intelecto e aos sentidos”. Esse era o espírito da coisa, mas terminei sem entender bulhufas.

– Ele poderia ter explorado mais a noção de “coisidade” da coisa. Ou mesmo de alienação, apelando dialeticamente para Marx.

– Marx?! Não misture as coisas.

– Sei que o tema é complexo, mas com algum esforço ele talvez conseguisse.  

– Talvez. A coisa só não foi pior porque ele acabou reconhecendo a falha. Essa foi para mim a melhor coisa da noite: o seu reconhecimento de que não é lá grande coisa.

– Também não humilhe o homem... Isso é coisa de ressentido.

– Ressentido coisa nenhuma.

– Não podemos julgar o professor apenas por esse erro. Cada coisa tem sua medida, não é certo extrapolar.

 –Tá bom. Mas saiba uma coisa: se aquilo se repetir, eu pego uma coisa da sala e jogo nele. 

– Que coisa?

– Uma bem pesada, claro.   

–Tolice. Isso não é coisa que se faça. Ele tem o seu valor.

– Tinha! Veja como são as coisas: não faz muito tempo ele era o tuxaua, uma "coisa" em termos de filosofia. E agora?

– Mas ele vai se reabilitar. Se há uma coisa certa neste mundo, é que um dia se segue ao outro.

– Se reabilitar como? Fazendo o quê?

– Sei lá. Qualquer coisa que nos leve de novo a confiar nele.

– E qual seria?

– Aí é que está a coisa: cabe a ele descobrir.

– Desconfio de que não conseguirá.    

– Por quê? Você está com má vontade... Pegue suas coisas e vamos embora.

– Já vou. Mas tem uma coisa: se ele não se reabilitar, vou passar isso na sua cara. Você está defendendo demais aquele coisa-ruim. Parece até que há... alguma coisa entre vocês dois.

Vamos embora, antes que eu me irrite! Você já não está falando coisa com coisa!

A nota

 O maior risco da interpretação é o intérprete ver no texto o que ele não tem. A essa prática dá-se o nome de superinterpretação, que não se confunde com o preciosismo. O preciosismo é o hábito de usar palavras “difíceis” para disfarçar a ausência de conteúdo (palavras demais, como se sabe, correspondem a ideias de menos).

            Já a superinterpretação diz respeito ao leitor, que vai além do que está dito. Vislumbra intenções, sutilezas, duplos sentidos onde muitas vezes não há mais do que mediocridade semântica. Quando o criticam, diz que o texto é uma obra aberta (só que ele tenta abri-la demais!).

            A superinterpretação pode ocorrer de boa ou de má-fe. Um exemplo do segundo caso é a correção que certo professor fez ao texto de um estudante que “precisava passar”. O tema da redação era “a amizade”, e o aluno escreveu apenas o seguinte: “Num tô afim de falá disso agora, pô. Tô sem ninguém.”

            O mestre lhe deu 9,0. Convocado à diretoria para se explicar, redigiu o seguinte comentário:

 

             O texto é sintético, ou seja, não revela o pecado da verborragia. A economia de meios expressivos se constitui num importante fator de coerência, pois o excesso de palavras não combinaria com a resolução do aluno em não escrever. Essa atitude de recusa, em que se percebe um misto de tédio e rebeldia, determina o minimalismo que orienta toda a redação.

            Vejamos algumas provas disso. O advérbio “não” é trocado por “num”, bem mais incisivo devido à ausência do ditongo. Com um “não” é possível negociar; com um “‘num” (abusado e peremptório), jamais. Merece também realce a troca de “estou” por “tô”, em que a aférese (supressão de fonemas iniciais) reforça a propensão ao tartamudo, ao pontual, ao monossilábico, própria de quem não quer muita conversa.

             A seguir vem uma infração à norma culta que, no entanto, se torna funcional no contexto de rejeição instaurado desde as primeiras linhas. A troca de “a fim” por “afim” (um erro de morfologia) justifica-se pela intenção de condensar o sentido dos homônimos. É como se o valor de finalidade contido na locução prepositiva se enlaçasse à ideia de afinidade presente no adjetivo, numa espécie de fusão fonossemântica que procura destacar a indisposição afetiva. O aluno parece dizer, com ceticismo: “Não estou a fim de um afim”, dando a entender que se cansou de procurar um amigo.

            O ceticismo também explica a forma verbal “falá”, pois a presença do “r” sugeriria uma vibração em nada condizente com o ânimo do autor (de uma seca e exasperada contundência). Tal ânimo se confirma no uso do monossílabo de teor exclamativo que aparece no fim do período: “pô”. Esse “pô”, com apócope (omissão de fonemas finais), acentua a dramaticidade da negativa.

             No segundo período repete-se a aférese (tô), mas agora seguida por uma expressão em português correto (sem ninguém). Nessa parte do texto, de um confessionalismo despojado, o estudante explica suas razões. Percebemos que as omissões e os deslizes se deveram a ele estar sozinho e, nesse estado, não ver sentido em escrever sobre a amizade. Compreendemos então que a recusa foi determinada por razões existenciais, que encontraram um correlato perfeito nas escolhas linguísticas.

          Essa é a explicação para a nota que lhe dei.

 

           O aluno passou. O professor, claro, perdeu o emprego. Algum tempo depois, foi contratado pelo jornal da situação. Dizem que sua função no periódico é fazer a crítica dos poemas do governador.

Notas sobre a voz passiva

 

Há manuais de redação que rejeitam o uso da voz passiva. Orientam que se diga, por exemplo, “O diretor suspendeu os alunos”, em vez de “Os alunos foram suspensos pelo diretor”. Existem casos, no entanto, em que a passiva é desejável. Nem sempre interessa ao redator afirmar que alguém faz alguma coisa. Ele pode querer dizer que alguma coisa “é feita”, destacando o termo que sofre a ação. Afirmar “o livro foi lido em pouco tempo pela turma” não é o mesmo que dizer “a turma leu o livro em pouco tempo”. No primeiro caso o foco recai no livro; no segundo, recai na turma.

Segundo Steven Pinker, “muitas vezes o escritor precisa desviar a atenção do leitor para longe do agente de uma ação. A voz passiva lhe dá essa possibilidade” (“Guia de escrita”, p. 75, Contexto). Por exemplo: “Quem não estiver de farda será proibido de entrar.” Proibido por quem? A passiva é um meio de camuflar o responsável por essa antipática interdição.

O propósito de esconder o agente pode se dever também a modéstia. Na apresentação de uma monografia, o autor tende a escrever: “Um enorme tempo foi gasto para levantar as fontes”. A passiva é um meio de ele “disfarçar” que dedicou muito tempo à tarefa. Outra forma seria usar o “plural da modéstia”, que também é uma forma de atenuar o egocentrismo (“Gastamos” um tempo enorme para levantar as fontes). Mas nesse caso o foco não mais estaria no tempo despendido.   

Omitindo o agente da ação, corre-se o risco de dar ao leitor uma falsa ideia de quem a pratica. É o que ocorre nesta passagem da redação de um aluno: “No texto Cortina de Burrice, de Cláudio de Moura e Castro, é feita uma comparação entre a sociedade brasileira e a europeia.”

O estudante dá a entender que a comparação entre a sociedade brasileira e a europeia é feita por outra pessoa, e não pelo próprio Cláudio de Moura e Castro. Ele não correria esse risco se tivesse optado pela voz ativa: “No texto Cortina de Burrice, Cláudio de Moura e Castro faz uma comparação entre a sociedade brasileira e a europeia.”

Vale a pena lembrar que a manutenção da voz concorre para a unidade do texto. Se a voz ativa aparece na primeira oração, é desejável que também apareça na(s) seguinte(s). O efeito é muito ruim quando isso não ocorre. Veja: “Os bandidos destruíram as evidências do crime e novas provas foram forjadas.” Se o sujeito é o mesmo (os bandidos), por que mudar a voz? É mais prático e direto dizer: “Os bandidos destruíram as evidências do crime e forjaram novas provas.” 

A voz passiva analítica (feita com verbo auxiliar) deve ser usada com parcimônia. Seu exagero tende a dificultar a leitura devido ao excesso de locuções. O prejuízo para o estilo é grande. Confira neste exemplo: “Foi feita” uma pesquisa para sondar a preferência dos homens quanto às mulheres com quem gostariam de “ser casados”. “Foram rejeitadas” por grande parte deles as liberais, as muito bonitas e as que já tinham filhos de outros casamentos.

O ideal, em casos como esse, é optar pela voz passiva sintética (com o pronome “se”) ou pela voz ativa, em que é natural a ordem direta. O texto melhora muito com as modificações: “Fez-se” uma pesquisa para sondar a preferência dos homens quanto às mulheres com quem gostariam de “se casar”. Grande parte deles “rejeitou” as liberais, as muito bonitas e as que já tinham filhos de outros casamentos.

Antes de encerrar estas notas, chamo a atenção para uma escolha bizarra que por vezes aparece nas redações. Trata-se de uma espécie de cruzamento entre a voz passiva analítica e a sintética. Pincei de outro aluno este exemplo: “Não é novidade dizer que no Brasil não se é cumprida as leis ambientais.” “Não se é cumprida”? Isso não existe em português. O aluno deveria dizer que as leis ou “não são cumpridas”, ou “não se cumprem”.

         Como se vê, não há motivo para rejeitar de antemão a voz passiva. O importante, como em toda escolha linguística, é atentar para a pertinência do seu emprego. Redige bem aquele que, imune a interdições preconceituosas, adapta a língua aos seus propósitos expressivos.

sábado, 10 de outubro de 2020

Dicas para quem vai fazer concurso

              


                     
                 Estude cedo e sempre

        Não deixe para estudar Português na última hora. É difícil, em pouco tempo, adquirir habilidade de leitura e domínio das normas gramaticais. As provas estão muito voltadas para a capacidade de o aluno interpretarproduzir textos; diante disso, o concursando deve ter hábito de leitura, treinar bastante a comunicação escrita e estudar gramática durante um tempo razoável a fim de adquirir domínio da norma culta 

         Quem estuda bem Português não aprende para concursos; torna-se um usuário competente da língua pelos anos afora. Isso faz diferença na vida profissional.


                             Fique atento ao que mais cai na prova

 O que se prioriza hoje são os mecanismos que promovem a textualidade, entre os quais se destacam a coerência, a coesão, a informatividade. Foi-se o tempo em que o importante era decorar nomenclatura e classificar orações. Hoje o aluno tem que demonstrar um conhecimento ativo, funcional, da língua. É fundamental ainda conhecer as técnicas de leitura e interpretação dos textos, bem como se preparar de forma objetiva, ou seja, lendo e resolvendo provas anteriormente elaboradas por órgãos como Esaf, Cespe, Cesgranrio, etc.

             

                             Treine muito leitura e interpretação de textos

      O problema de ler e interpretar textos é primeiro semântico; tem a ver com a dificuldade em compreender o vocabulário. Depois se estende à esfera estrutural e lógica. Uma boa providência é colocar o texto na ordem direta e procurar fazer inferências (deduções) a partir dos conteúdos apresentados. Isso é fundamental em provas de concursos, cujos textos destacam mais as ideias do que as emoções.

Ler bem é explorar todas as virtualidades de um texto, relacioná-lo com outros textos e com o mundo ao redor. As bancas de concurso vêm cada vez mais exigindo essas habilidades.

                

                Prepare-se para as provas discursivas 

As provas discursivas permitem uma melhor avaliação dos conhecimentos linguísticos dos alunos, que são levados não apenas a reconhecer as estruturas corretas, mas também a produzi-las.

Isso requer uma atenção redobrada. É preciso, por exemplo, muito cuidado com a ortografia e com a sintaxe de concordância e regência. Gramaticalmente, esses são os erros mais comuns nesse tipo de provas.

A par disso, é preciso estruturar as respostas de modo a que elas efetivamente respondam o que foi pedido. Respostas lacunosas ou prolixas denotam um domínio precário do idioma, o que obviamente compromete a avaliação


                           Leia livros...

    É fundamental conhecer os bons autores  os chamados clássicos, que constituem referência de expressão linguística. Neles se aprende gramática de maneira indireta, mas não menos eficaz. Sobretudo, neles se aprende a usar bem a língua. É preciso entender que a gramática nada mais é do que uma sistematização dos usos linguísticos presentes nos bons escritores (e redatores).

Se não se tem tempo para ler Machado de Assis, Graciliano Ramos, Clarice Lispector e outros, pode-se com muito proveito ler os bons colunistas de revistas e jornais. O Brasil, historicamente, tem uma tradição de jornalistas-escritores que vem de Bilac, Machado, João do Rio, Nelson Rodrigues, Rubem Braga e vários outros.

Estes autores morreram, mas deixaram um legado que se estende a muitos nomes hoje em atividadetanto no País quanto aqui mesmo, na Paraíba, ondeexcelentes cronistas.

 

                                 ...revistas e jornais 

           Os bons jornais e revistas são excelentes subsídios para o conhecimento da língua. Neles geralmentebons articulistas, que dominam a palavra escrita e, pela própria natureza do veículo em que escrevem, são levados a exercitar ao máximo qualidades como a clareza e a concisão.

Esses escritos são referenciais preciosos para quem deseja produzir um texto enxuto e objetivo. Além disso, eles trazem informações de natureza variada, o que é essencial para aumentar a compreensão dos problemas que ocorrem no mundo. Sem esse conhecimento, ninguém chega a ser um bom leitor.

 

                                  Aprenda a estudar 

            Passe e repasse todos os itens do programa. Resolva provas de anos anteriores referentes ao tipo de concurso que vai fazer. Procure uma boa orientação, para não correr o risco de estudar errado. Em provas de concursos, devem-se concentrar os esforços naquilo que é decisivo; para facilitar isso, há todo um histórico de como procedem as entidades responsáveis pela elaboração das provas. É fundamental conhecê-lo.

                                              

                                 Cultive a disciplina

         Ter disciplina é fazer o que deve ser feito quando se desejaria fazer outra coisa. 

       Trace uma meta e procure alcançá-la com persistência e disciplina. Existem alunos que se matriculam em nosso curso, frequentam-no um mês e depois desaparecem. Um dia voltam, recomeçam a frequentá-lo e desaparecem de novo. Parecem pessoas mal resolvidas, que precisam em algum momento fingir que estão estudando. Esse modo de agir termina levando ao cansaço e à desistência.


                   Redobre os cuidados nas provas da área jurídica

 O texto jurídico exige sobretudo clareza e rigor. O vocabulário jurídico é unissêmico, ou seja, nele cada palavra tem um valor único, imune às extrapolações da linguagem figurada. A ele repugna a ambiguidade, qualquer desvio é comprometedor (enquanto o texto literário, por exemplo, tira sua riqueza da polissemia e, em parte, dos “desviosem relação à norma).

          Nesse tipo de provas, todo cuidado é pouco com a ordem das palavras, o sentido, a pontuação. Uma vírgula mal colocada pode obscurecer o pensamento e gerar controvérsias interpretativas.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

Paixão e escrita

Dizem que a paixão cega, por isso os apaixonados não percebem os defeitos dos parceiros. Uma tradução aproximada dessa verdade se encontra no velho ditado: “Quem ama o feio, bonito lhe parece”. Os apaixonados são movidos por razões que só Freud explica – e aqui não me limito a repetir um clichê. Para o criador da Psicanálise nossa atração pelo objeto amoroso decorre de nebulosas determinações inconscientes, que remontam às vivências infantis.

O amor paixão (pois há o amor amor, que não se enquadra no modelo a que me refiro) não passa pelo teste de realidade, pois se alimenta da fantasia. Alguém já escreveu que a gente se apaixona por metáfora, ou seja, pela semelhança que encontra entre o ser real e uma imagem dele moldada em nosso inconsciente. Nunca são a mesma pessoa, e uma delas (o ser real) pode até desmerecer a outra. Eis por que a paixão tem um tempo, um prazo de validade; vai sucumbindo à proporção que do ser idealizado emergem os traços reais.

É mais ou menos como naquele truque de espelhos em que a mulher se metamorfoseia em macaco. Lembro-me de um número desse tipo na Festa das Neves. Aos poucos Monga, a Bela, vai se transformando num símio feio e agressivo. Só que, ao contrário do que ocorre na encenação, na vida a mudança não tem volta. O jeito então é domar o macaco, habituar-se com sua feiura, aprender a conviver com ele. Essas são artes do amor.

O fato é que ninguém se apaixona movido pela razão. Por isso achei curiosa esta passagem publicada num site de adolescentes:

 “Sempre me correspondi com meus amigos via e-mail e acabei conhecendo outras pessoas por meio da rede. Cheguei a namorar um dos caras com os quais eu conversava. Mas fui percebendo, com o tempo, que ele escrevia muito mal. Uma vez cheguei a lhe devolver um e-mail com as correções. Ele ficou uma fera. Mas não dava para admitir coisas como ‘ficou para traz’, ou ‘voçê’, ou ‘vamos comê’. O namoro perdeu um pouco do brilho. Se antes de iniciar o relacionamento eu soubesse que ele escrevia assim, provavelmente não teria nem começado.”

A garota que escreveu isso é uma exceção, claro. Para ela o feio linguístico não parece bonito; pelo contrário, é um defeito que pode tornar inviável a aproximação com um eventual pretendente. Samara (o nome dela) não está disposta a se relacionar com quem desconhece a língua a ponto de cometer erros grosseiros de ortografia. Quer alguém que saiba um mínimo de gramática.

Dirão os românticos que ela só pensa assim porque nunca amou de verdade. Pode ser. Mas o fato de condicionar o namoro a um mínimo de conhecimento linguístico revela um espírito arguto e cuidadoso. Samara deve saber que a ligação amorosa começa com o corpo mas se alimenta mesmo é das ações e das palavras, e que não dá para viver com quem não sabe se expressar.

Ela intuiu uma verdade que a gente confirma lendo as memórias de conquistadores célebres, como Casanova. Eles foram sobretudo hábeis usuários da língua. Podiam até não ser sinceros, mas sabiam que no jogo da conquista a lábia conta mais do que os lábios. E que no discurso reside talvez a mais legítima expressão espiritual do amor. Daí os bilhetes, as cartas, os registros na internet, que buscam testemunhar o que os apaixonados sentem. Imaginem esses textos escritos num português indigente como o usado pelo “cara” com quem Samara se correspondia!

    Barthes escreveu que só tem sentido falar “Eu te amo” uma vez. Depois disso, a declaração vira banalidade. Para que o sentimento não morra, deve se alimentar não apenas de ações como também de um discurso que traduza o universo espiritual e, sobretudo, os interesses comuns aos dois. O amor não acaba quando morre o desejo. Acaba quando os amantes não têm mais o que dizer. Ou têm, mas não sabem como fazê-lo.

domingo, 2 de agosto de 2020

A gramática no texto

Pais e mães que procuram meu curso para seus filhos costumam fazer a ressalva: “Queremos um curso de redação, não de gramática.” Geralmente acrescentam a essas palavras a informação de que os filhos não leem, ou leem pouco, por isso têm dificuldade de escrever.  O acréscimo é pertinente, demonstra bom senso. Quem não lê não escreve. O que não se entende é a restrição à abordagem gramatical. Como se fosse possível produzir satisfatoriamente um texto sem o conhecimento das normas que disciplinam o uso da língua.

Por que essa rejeição, se grande parte dos problemas com que nos deparamos nas redações é de natureza gramatical? O que os pais na verdade contestam não é a gramática, mas a forma como ela é ensinada na escola. Contestam a gramatiquice, que se respalda na decoreba em vez de enfatizar o estudo dos mecanismos que estruturam o uso do idioma. Sem a compreensão desses mecanismos, é impossível escrever.

A verdade é que há dois tipos de abordagem gramatical. O primeiro usa a língua como um meio para ilustrar a norma. É um modelo canhestro e parasitário, que tende a converter o aluno em mero recitador das regras. Um modelo que tende a imobilizar o pensamento e inibir a capacidade de produção textual. Ninguém se torna redator simplesmente por saber conjugar verbos ou distinguir os termos da oração.

O segundo tipo inverte o foco.  Reconhece que a gramática é meio, e não fim. Em vez de privilegiar as regras, e procurar ilustrá-las em frases descontextualizadas, desperta a percepção delas no uso do idioma. É uma gramática para o texto, que integra outros domínios além do normativo. Entre eles o semântico e o estrutural, pois não há boa redação sem um vocabulário adequado e uma progressão articulada das ideias. Tampouco se escreve bem sem um repertório de informações que permita construir argumentos sólidos. Esses últimos requisitos estão além do âmbito gramatical, é certo, mas não o dispensam.

Como redigir bem sem atentar para a concordância, a regência, a sintaxe dos modos e tempos verbais, a ordem adequada dos termos na frase, enfim, sem conhecer os recursos que levam a um texto articulado e coerente? No ótimo “Para ler como um escritor” (Zahar), Francine Prose observa que “dominar a lógica da gramática contribui para a lógica do pensamento”. Se escreve bem quem pensa bem, não há como ignorar o suporte gramatical.

            Os escritores também não dispensam a gramática; muitas vezes a usam intuitivamente. Por meio da leitura e do exercício da escrita vêm a dominar os recursos que asseguram a correção e a lógica do texto, pois sabem que eles concorrem para a clareza e a expressividade. Quando cometem seus “desvios”, não deixam de ter em mente o referencial normativo. Como diz Millôr Fernandes, “se não houver norma, não há como transgredir. A língua tem variantes, mas temos de ensinar a escrever o padrão”. Nossos alunos não são escritores, não detêm o conhecimento intuitivo dos padrões gramaticais, mas certamente não será por meio de um aprendizado superficial, confundido meramente com a aquisição de uma terminologia, que chegarão a escrever bem.

Desconhecer a gramática é como pretender que um corpo se mantenha de pé sem a espinha dorsal. Limitar-se a ela, contudo, é preservar-lhe apenas o esqueleto. O texto, como todo organismo, necessita de ossos e também de músculos, pele, nervos, tendões. É da articulação desses elementos que ele obtém a eficiência e a sedução com que envolve o leitor.


quarta-feira, 1 de julho de 2020

Problemas de coesão em redações de vestibulandos


     
       A coesão é um dos principais requisitos para um agrupamento de palavras constituir um texto, pois promove a articulação dos elementos que o compõem. É o arcabouço formal de que deriva a coerência, e se constrói “através de mecanismos gramaticais e lexicais” (Costa Val, 2006, p. 6). Se os componentes linguísticos não se articulam por meio de tais mecanismos, tem-se um ajuntamento de palavras incapaz de comunicar a intenção de quem escreve.    
        As falhas coesivas são comuns em redações de vestibulandos. Ultrapassam em quantidade os deslizes decorrentes do uso inadequado das palavras. Envolvem, além do plano lexical, aspectos morfológicos e sintáticos, comprometendo a estruturação do pensamento. Também comprometem o sentido, pois é a continuidade promovida pela coesão que assegura a inteireza semântica do texto. Segundo Irandé Antunes, “a continuidade que se instaura pela coesão é, fundamentalmente, uma continuidade semântica” (2005, p. 50).  
         O assunto é objeto de uma diversificada teoria, que não cabe discutir aqui. Nosso propósito é comentar algumas falhas nesse importante fator de textualidade a partir de material produzido por nossos alunos. Elas, grosso modo, decorrem do uso inadequado dos conectivos, do cruzamento de estruturas sintáticas e da falta de correlação entre classes morfológicas. A esse conjunto soma-se o emprego abusivo do advérbio relativo “onde” (o chamado “ondismo”), que preferimos manter num grupo à parte. Vejamos alguns casos que exemplificam cada uma dessas possibilidades.
  
 I - Uso inadequado dos conectivos

           Os conectivos são responsáveis pela articulação lógico-sintática de termos simples e orações. A falha no seu emprego gera incoerência e obviamente compromete a unidade textual. Alguns exemplos:    
          
           (a) “Como os adolescentes têm o organismo menos resistente, por isso podem virar dependentes logo cedo.”
           (b) “O avanço tecnológico, além de suas vantagens e comodidades, traz preocupação a todos nós.”
          (c) “Não queria deixar vovó sozinha a tão pouco tempo da morte do meu avô.”
          (d) “O cigarro é uma irracionalidade, mas não podemos aplaudi-lo”.
          (e) “Uma das práticas que até agora não foi elaborado o conceito é a do ‘ficar’”.
          (f) “O sofrimento é uma etapa da vida em que todos passam por ela.” 
          (g) “Perdi meu pai e fui morar com meu tio em Areia; ele era um sacerdote, no qual aprendi as minhas primeiras noções de latim.”
Em (a), o uso simultâneo da conjunção causal e da consecutiva mostra que o aluno foi incapaz de perceber que as circunstâncias por elas indicadas se expressam com a presença de apenas um dos conectivos. A indefinição quanto à oração principal não gera propriamente incoerência, mas dificulta a apreensão da mensagem.
           Incoerência ocorre nas três passagens seguintes. Em (b), trocou-se um conectivo concessivo (apesar de) por um aditivo (além de). O uso de preposição em lugar de verbo, em (c), transforma passado em futuro e dá a impressão de que o autor da frase foi capaz de prever a morte do avô! E como aceitar, conforme se lê em (d), que sendo o cigarro uma irracionalidade haja algum tipo de contraste em aplaudi-lo?
Os três exemplos seguintes revelam deslizes no uso do pronome relativo, que diferentemente das conjunções e preposições promove a coesão por referência, e não por sequenciação (o relativo representa semanticamente um termo da oração anterior).
O emprego do chamado relativo universal, em (e), confirma a tendência que se observa hoje de evitar o “cujo”. Pareceu difícil ao aluno reconhecer “conceito” como um núcleo modificado pelo adjunto adnominal “uma (das práticas)” e iniciar a oração por “cujo conceito”.
           No exemplo (f) o estudante faz anteceder ao relativo uma preposição inadequada à regência do verbo, quando bem poderia tê-la trocado pelo conectivo correto, que ele usa no fim da frase: “...é uma etapa da vida por que todos passam.” Também por uma falha de regência quebra-se a coesão no último exemplo. O verbo “aprender”, bitransitivo no contexto, rege seu complemento indireto com a preposição “com”, e não “em” (o aluno aprendeu com o seu tio, não no seu tio). Pode ter concorrido para a confusão a presença do adjunto adverbial de lugar; afinal de contas, foi em Areia que ele recebeu do parente as primeiras noções de latim.
           São muitos os casos de ruptura da coesão devido ao uso errôneo dos conectivos. Terminamos com esta curiosa passagem, em que a conjunção e a preposição agrupadas têm sentidos opostos -- “até” indica limite, “enquanto” indica duração: “Os famosos terão que lidar com os fotógrafos das revistas de fofoca até enquanto durarem suas carreiras artísticas”. Associar os dois torna o enunciado incoerente. Ou se suprime o “até”, ou se mantém esse conectivo com a devida alteração do verbo (“até acabarem suas carreiras artísticas”).

            II - Cruzamento de estruturas sintáticas

É comum o aluno juntar duas estruturas que individualmente fazem sentido, mas associadas truncam o enunciado. Isso ocorre, por exemplo, na passagem abaixo:
      
          Segundo o pesquisador britânico Richard Lynn, em entrevista a Época, ele afirma que os ateus são mais inteligentes do que os religiosos.”
         A referência inicial a “Richard Lynn” já diz que ele é o autor da afirmação que vem depois. Não há então necessidade de repetir o pronome e o verbo dicendi (“ele afirma”).  O aluno parece que esqueceu a preposição com que iniciou a frase e acabou  dando-lhe o aspecto de um anacoluto. Deveria ter optado por uma destas construções:  
         1 - “Segundo o pesquisador britânico Richard Lynn, em entrevista a Época, os ateus são mais inteligentes do que os religiosos”;
            2 - “O pesquisador britânico Richard Lynn afirma, em entrevista a Época, que os ateus são mais inteligentes do que os religiosos”.

           Por vezes esse tipo de cruzamento é efeito da associação de alguns verbos e nomes com outros de regências diferentes, o que redunda no uso de conectivos indevidos. É o que ocorre em passagens como: “A pessoa tranquila não está preocupada em vencer de ninguém” e “Discordo com suas idéias”.
          O mau uso das preposições se explica, respectivamente, pelo vínculo mental que se fez entre “vencer” e “ganhar”, que rege complemento introduzido por “de”; e entre “discordar” e “não estar de acordo”, em que o substantivo forma locução prepositiva mediante o acréscimo de “com”.

    III - Falta de correlação entre classes morfológicas     

            A falha de coesão também ocorre quando o aluno supõe que o termo de uma classe gramatical é capaz de estabelecer uma correlação que, sintaticamente, só pode ocorrer com o de outra.  Por exemplo:
 “A sociedade contemporânea apresenta mais problemas emocionais do que em outros períodos de nossa civilização.”
A preposição grifada, introdutora de um adjunto adverbial de lugar, demonstra que o autor pretendeu comparar duas circunstâncias, e não dois sujeitos. Ele não quis dizer que a sociedade contemporânea apresenta mais problemas emocionais do que outros períodos (apresentaram). Pretendeu, isto sim, afirmar que os problemas emocionais na contemporaneidade são mais frequentes do que em períodos anteriores -- o que faz diferença do ponto de vista sintático.
Pareceu-lhe que o adjetivo “contemporânea”, por seu valor semântico, correlacionava-se adequadamente com o segmento de valor adverbial. Evitaria a ruptura se tivesse escrito, por exemplo: “A sociedade apresenta mais problemas emocionais hoje do que em outros períodos de nossa civilização.”
Na frase que segue, a ideia contida no substantivo “conflitos” é retomada pela expressão vicária “faz isso”, que só poderia substituir o conteúdo de um verbo: “Apesar dos conflitos constantes, eu sei que minha mãe só faz isso para me ajudar e quer o melhor de mim.”
A noção de “brigar”, latente em “conflitos”, levou à falha coesiva. Explicitando-se a ação verbal, corrige-se a quebra: “Minha mãe briga constantemente comigo, mas sei que ela só faz isso para me ajudar e quer o melhor de mim.”
Podem-se incluir nesse grupo os casos em que a falta de correlação se dá devido à confusão entre as subclasses que englobam agente e paciente, ou vice-versa. Embora pertença à mesma classe morfológica do termo anterior, o elemento que retoma esse termo difere do antecedente pelo maior grau de concretude ou abstração que possui. Exemplos:

(h) “O consumismo é o ato de comprar de forma compulsiva, sem necessidade e consciência. Difere do consumidor, pois este compra o que é necessário para a sua vida.”
(i) “O professor, sinônimo de educação, deveria ser considerada uma das profissões mais respeitadas e dignas.”

“Consumismo”, que é a prática de comprar em excesso, não se correlaciona com “consumidor”, que é quem compra. Não haveria quebra se o sujeito do primeiro período   fosse o substantivo “consumista” -- fazendo-se, é claro, as alterações no predicado. Ou se, em vez de “consumidor”, aparecesse uma expressão como “mero consumo”.
Semelhantemente, em (i), “professor” deveria se correlacionar com “profissionais”. “Profissões” só caberia se o sujeito do primeiro parágrafo fosse, por exemplo, o substantivo “magistério”. A falta de correlação provocou, inclusive, falha na concordância da voz passiva (“deveria ser considerada”).

         IV - Ondismo 

         Ondismo é o emprego despropositado do advérbio relativo “onde”. O normal é usá-lo como introdutor de orações adjetivas, mas a tendência de alguns alunos é fazer dele uma espécie de muleta, um conectivo-ônibus, que liga qualquer oração. Os exemplos abaixo mostram isso:  

(j) “Esses indivíduos possuem o humor instável, onde as pessoas ao seu redor manipulam-nos facilmente.”
Aqui a presença do “onde”, que não retoma nenhum termo anterior, tende a mascarar a relação existente entre as orações (que é de causa e conseqüência). Em vez de “onde”, caberia “por isso” ou conectivo equivalente.   
            (l) “O bate-papo da internet está assassinando a língua portuguesa, onde é utilizado apenas por pessoas que têm base escolar”.
            A que antecedente se refere o “onde” nessa passagem? Na cabeça do aluno, à internet, que seria o lugar onde ocorre o bate-papo que está assassinando a nossa língua. Estranho é que participem do chat apenas as pessoas “que têm base escolar”. Que fariam com a flor do Lácio as que não a têm?
          (m) “De tudo que meu avô me ensinou, essa foi a maior lição, onde a alegria transforma o impossível em possível.”
Esse é mais um exemplo que confirma a importância da função coesiva para a leitura. O uso inapropriado do “onde” dificulta a percepção do que o avô ensinou. Tão simples dizer que sua maior lição foi “que a alegria transforma o impossível em possível”.

Os problemas apontados refletem um despreparo que não é apenas de natureza gramatical. Ninguém decora conectivos para aplicá-los bem, pelo contrário: aplica-os bem quando é capaz de perceber as relações que eles estabelecem entre as ideias.
Infelizmente boa parte dos alunos não é capaz de estabelecer essas relações e usa os elementos coesivos apenas por um imperativo escolar. Escreve o que lhe vem à cabeça e, como diz Alcir Pécora, “desliga o sentido do relator do sentido da relação” (1999, p. 77). Com isso, revela-se incapaz de conferir aos componentes do discurso nexo e coerência. Cabe à escola trabalhar essas deficiências enfatizando a leitura. Só aprendendo a ler, o estudante perceberá a natureza e o sentido dos enlaces que se estabelecem entre as palavras -- condição primeira para produzir com eficiência um texto.

                                                 Bibliografia

ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras; coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. 
COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. São Paulo: Martins Fontes, 1999.