“Sempre que abro um livro e me deparo com um
trecho difícil, não me deixo consumir pela
ansiedade; depois de uma ou duas tentativas,
desisto do esforço (...). Se um livro me enfastia,
pego
outro.” (Montaigne)
“Escrever com simplicidade requer coragem, por e-
xistir o risco de se ser (...) considerado simplório
pelos que acham que a prosa intragável é um sinal
de inteligência.” (Alain de Botton)
A boa escrita exige clareza e
domínio do tema. Exige sobretudo uma
apresentação dos fatos e ideias com base na realidade observável. Isso implica objetividade, rejeição a preciosismos
(escrita difícil) e a fuga à pseudoerudição.
Essas são características do que
Steven Pinker chama de estilo clássico, que procura “ver o mundo” (e não apenas
analisá-lo ou teorizar sobre ele), tornando-o visível também para quem lê. Isso
é impossível quando o redator, em vez de
tratar com clareza e transparência o tema, opta por discussões técnicas,
filosóficas ou metalinguísticas de pouca consistência argumentativa. O
resultado é um texto obscuro e por vezes alheio à discussão do tema.
Para que melhor se entenda o que
queremos dizer, apresentamos abaixo quatro fragmentos de redações de alunos
sobre o tema “O que é ser original” (as passagens não tiveram nenhum tipo de
correção):
I
Outrossim, isso (a inovação) está se
fazendo menos presente na sociedade. Segundo o conceito de aldeia global de
Marshall McLuhan, a globalização fez com que cada vez a quebra de fronteiras se
desse no âmbito cultural; como a cultura, para Kant, são conhecimentos “a
priori”, esses, caso sejam uniformes – como proposto por McLuhan -- formarão conhecimentos “a posteriori”, os
quais dependem da experiência, sem particularidades, ou seja, experiências
menos originais.
II
A partir da vanguardas europeias, a
acepção do original se perdeu – foi posta em questão e, mais que nunca, a
excentricidade foi mal interpretada, um dos temores de Fernando Pessoa. O
excêntrico é louco, já o outro é gênio – pequenas diferenças importantíssimas e
perigosas. Como disse Kant, a razão é inata e empírica; a inata é igual em todo
ser humano, o que o evolucionismo já contradiz, pois os indivíduos têm
capacidades distintas; considera-se, então, que no homem essas diferenças
biológicas podem sim favorecer um raciocínio diferenciado; já a segunda é o
desenvolvimento do fenótipo, a que mais influencia, já que estar predisposto a
uma característica não implica a certeza de a ter. Nessa sequência, o original
e o excêntrico têm ambos o raciocínio diferenciado, mas só o original respeita
o imperativo categórico, a ética.
III
A originalidade se dá por uma série de
fatores, o primeiro deles é a criatividade. A habilidade de resolver situações
problema de maneira inovadora é altamente importante para ser considerado
original pois demonstra que o indivíduo não tem medo de errar.
Porém, para que seja possível
exercer a criatividade é necessário que exista um acúmulo de conhecimento por
parte do indivíduo. Para se inovar é preciso conhecer o problema com que se
está lidando, e quanto mais conhecimento se tem, menor é a chance de equívoco.
IV
A ideia de originalidade no mundo
atual tem uma função muito peculiar: estimular o consumo. Assim, a industria
cria personagens, tendências de moda e aparelhos tecnológicos mais sofisticados
me que rapidamente se tornam obsoletos. O Vale do Silício, na Califórnia,
Estados Unidos, maior centro tecnológico do mundo é um grande exemplo de
criatividade e inovação, onde grandes empresas buscam por novas ideias, na
tentativa de desenvolver novos produtos que tornem-se opção para consumo da
maior parte da sociedade.
Comentários
É fácil ver que, em I e II, os
alunos estão mais preocupados em citar
autores e apresentar conceitos do que em discutir concretamente o tema. No
primeiro, para desenvolver a tese de que a inovação “se faz pouco presente na
sociedade”, o aluno cita McLuhan e o seu conceito de globalização. Até aí tudo
bem: a globalização determina certa homogeneização de comportamento que pode
levar a uma menor originalidade das pessoas. O problema é que, para desenvolver
o argumento, o estudante cita Kant e promove uma confusão entre os dados
apriorísticos, que “a cultura internaliza”, e a uniformização promovida pela
aldeia global. A ideia de que a homogeneização da cultura gera conhecimentos a
posteriori é extremamente confusa. Mistura referências dos dois estudiosos,
que se debruçam sobre diferentes domínios cognitivos e comportamentais. Seria
preciso um amplo trabalho analítico-interpretativo para associar Kant e aldeia
global.
Em II o problema se repete com mais
gravidade. O parágrafo começa com a afirmação pouco clara de que, a partir das
vanguardas europeias, “a acepção do original se perdeu” (?). O que vem a ser
isso? Adiante o aluno esclarece que ela foi na verdade posta em questão, o que
faz algum sentido; mas a obscuridade volta com a afirmação seguinte, de que a excentricidade
“mais do que nunca, foi mal interpretada”. Original é o mesmo que excêntrico? E
por que essa má interpretação seria o temor de Fernando Pessoa (afirmação vaga,
inesperada e destituída de qualquer explicação)?
Como se isso não bastasse, seguem-se
inoportunas considerações sobre o inatismo e o empirismo da razão a partir de
Kant (de novo ele!) e uma referência ao evolucionismo, que levam cada vez mais a discussão para longe do tema. O aluno ainda
traz elementos da biologia (com a menção ao fenótipio) e termina por uma
referência à ética. O peso dessa massa terminológica soterra o pensamento e tira
dele o que pode haver de claro e discernível. O ápice da impropriedade é
associar originalidade a inatismo e excentricidade a empirismo, uma mistura
arbitrária entre categorias conceituais distintas.
O panorama melhora na passagem III. O teor
das afirmações ainda é abstrato, pois o aluno não refere fatos, exemplos,
ilustrações. No entanto percebemos nessa passagem uma reflexão pessoal, feita com
bom senso e simplicidade. Com clareza,
sobretudo. Não há como negar que a habilidade para resolver situações-problema
de maneira inovadora constitui um bom requisito para se aferir a originalidade.
Também é certo que, sem estudo e conhecimento dos problemas, é impossível
chegar a soluções originais. O aluno não “descobre a pólvora”, mas se recusa a
usar balas de festim!
A passagem IV é a que melhor realiza
o propósito de discutir o tema sem preciosismos, citações desnecessárias e
confusões conceituais. O quadro que o aluno apresenta no início é concreto, perceptível e marca inegavelmente
o mundo atual. Depois de afirmar que originalidade e estímulo ao consumo se
associam, o aluno detalha isso com fatos e outras evidências. Em vez de
discutir conceitos ou citar autores difíceis, menciona elementos que todos conseguimos “ver” (personagens, moda, aparelhos
tecnológicos). Em seguida reforça a argumentação com um exemplo que se constitui num símbolo do que está afirmando;
quem, vivendo no mundo de hoje, discorda de que o Vale do Silício é uma usina
de ideias originais que visam (entre outros objetivos) a estimular o consumo?
O bom texto dissertativo precisa
disto: concretude, informação e uma análise pertinente do que é apresentado.
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