quinta-feira, 9 de maio de 2019

O perigo da falsa erudição


“Sempre que abro um livro e me deparo com um
trecho difícil, não me deixo consumir pela
ansiedade; depois de uma ou duas tentativas,
desisto do esforço (...). Se um livro me enfastia, pego
outro.” (Montaigne)

“Escrever com simplicidade requer coragem, por e-
xistir o risco de se ser (...) considerado simplório
pelos que acham que a prosa intragável é um sinal
de inteligência.” (Alain de Botton)
   
                                       
        A boa escrita exige clareza e domínio do tema. Exige sobretudo uma apresentação dos fatos e ideias com base na realidade observável. Isso implica objetividade, rejeição a preciosismos (escrita difícil) e a fuga à pseudoerudição.

            Essas são características do que Steven Pinker chama de estilo clássico, que procura “ver o mundo” (e não apenas analisá-lo ou teorizar sobre ele), tornando-o visível também para quem lê. Isso é impossível quando o redator, em vez de tratar com clareza e transparência o tema, opta por discussões técnicas, filosóficas ou metalinguísticas de pouca consistência argumentativa. O resultado é um texto obscuro e por vezes alheio à discussão do tema.

         Para que melhor se entenda o que queremos dizer, apresentamos abaixo quatro fragmentos de redações de alunos sobre o tema “O que é ser original” (as passagens não tiveram nenhum tipo de correção):

                                                          I
           Outrossim, isso (a inovação) está se fazendo menos presente na sociedade. Segundo o conceito de aldeia global de Marshall McLuhan, a globalização fez com que cada vez a quebra de fronteiras se desse no âmbito cultural; como a cultura, para Kant, são conhecimentos “a priori”, esses, caso sejam uniformes – como proposto por McLuhan --  formarão conhecimentos “a posteriori”, os quais dependem da experiência, sem particularidades, ou seja, experiências menos originais.

                                                         II
           A partir da vanguardas europeias, a acepção do original se perdeu – foi posta em questão e, mais que nunca, a excentricidade foi mal interpretada, um dos temores de Fernando Pessoa. O excêntrico é louco, já o outro é gênio – pequenas diferenças importantíssimas e perigosas. Como disse Kant, a razão é inata e empírica; a inata é igual em todo ser humano, o que o evolucionismo já contradiz, pois os indivíduos têm capacidades distintas; considera-se, então, que no homem essas diferenças biológicas podem sim favorecer um raciocínio diferenciado; já a segunda é o desenvolvimento do fenótipo, a que mais influencia, já que estar predisposto a uma característica não implica a certeza de a ter. Nessa sequência, o original e o excêntrico têm ambos o raciocínio diferenciado, mas só o original respeita o imperativo categórico, a ética.

                                                       III
           A originalidade se dá por uma série de fatores, o primeiro deles é a criatividade. A habilidade de resolver situações problema de maneira inovadora é altamente importante para ser considerado original pois demonstra que o indivíduo não tem medo de errar.
            Porém, para que seja possível exercer a criatividade é necessário que exista um acúmulo de conhecimento por parte do indivíduo. Para se inovar é preciso conhecer o problema com que se está lidando, e quanto mais conhecimento se tem, menor é a chance de equívoco.

                                                      IV
            A ideia de originalidade no mundo atual tem uma função muito peculiar: estimular o consumo. Assim, a industria cria personagens, tendências de moda e aparelhos tecnológicos mais sofisticados me que rapidamente se tornam obsoletos. O Vale do Silício, na Califórnia, Estados Unidos, maior centro tecnológico do mundo é um grande exemplo de criatividade e inovação, onde grandes empresas buscam por novas ideias, na tentativa de desenvolver novos produtos que tornem-se opção para consumo da maior parte da sociedade.

                                                  Comentários

              É fácil ver que, em I e II, os alunos estão mais preocupados em citar autores e apresentar conceitos do que em discutir concretamente o tema. No primeiro, para desenvolver a tese de que a inovação “se faz pouco presente na sociedade”, o aluno cita McLuhan e o seu conceito de globalização. Até aí tudo bem: a globalização determina certa homogeneização de comportamento que pode levar a uma menor originalidade das pessoas. O problema é que, para desenvolver o argumento, o estudante cita Kant e promove uma confusão entre os dados apriorísticos, que “a cultura internaliza”, e a uniformização promovida pela aldeia global. A ideia de que a homogeneização da cultura gera conhecimentos a posteriori é extremamente confusa. Mistura referências dos dois estudiosos, que se debruçam sobre diferentes domínios cognitivos e comportamentais. Seria preciso um amplo trabalho analítico-interpretativo para associar Kant e aldeia global.

         Em II o problema se repete com mais gravidade. O parágrafo começa com a afirmação pouco clara de que, a partir das vanguardas europeias, “a acepção do original se perdeu” (?). O que vem a ser isso? Adiante o aluno esclarece que ela foi na verdade posta em questão, o que faz algum sentido; mas a obscuridade volta com a  afirmação seguinte, de que a excentricidade “mais do que nunca, foi mal interpretada”. Original é o mesmo que excêntrico? E por que essa má interpretação seria o temor de Fernando Pessoa (afirmação vaga, inesperada e destituída de qualquer explicação)? 

          Como se isso não bastasse, seguem-se inoportunas considerações sobre o inatismo e o empirismo da razão a partir de Kant (de novo ele!) e uma referência ao evolucionismo, que levam cada vez mais a discussão para longe do tema. O aluno ainda traz elementos da biologia (com a menção ao fenótipio) e termina por uma referência à ética. O peso dessa massa terminológica soterra o pensamento e tira dele o que pode haver de claro e discernível. O ápice da impropriedade é associar originalidade a inatismo e excentricidade a empirismo, uma mistura arbitrária entre categorias conceituais distintas. 

         O panorama melhora na passagem III. O teor das afirmações ainda é abstrato, pois o aluno não refere fatos, exemplos, ilustrações. No entanto percebemos nessa passagem uma reflexão pessoal, feita com bom senso e simplicidade. Com clareza, sobretudo. Não há como negar que a habilidade para resolver situações-problema de maneira inovadora constitui um bom requisito para se aferir a originalidade. Também é certo que, sem estudo e conhecimento dos problemas, é impossível chegar a soluções originais. O aluno não “descobre a pólvora”, mas se recusa a usar balas de festim!

       A passagem IV é a que melhor realiza o propósito de discutir o tema sem preciosismos, citações desnecessárias e confusões conceituais. O quadro que o aluno apresenta no início é concreto, perceptível e marca inegavelmente o mundo atual. Depois de afirmar que originalidade e estímulo ao consumo se associam, o aluno detalha isso com fatos e outras evidências. Em vez de discutir conceitos ou citar autores difíceis, menciona elementos que todos conseguimos “ver” (personagens, moda, aparelhos tecnológicos). Em seguida reforça a argumentação com um exemplo que se constitui num símbolo do que está afirmando; quem, vivendo no mundo de hoje, discorda de que o Vale do Silício é uma usina de ideias originais que visam (entre outros objetivos) a estimular o consumo?
         O bom texto dissertativo precisa disto: concretude, informação e uma análise pertinente do que é apresentado.

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