quarta-feira, 1 de julho de 2020

Problemas de coesão em redações de vestibulandos


     
       A coesão é um dos principais requisitos para um agrupamento de palavras constituir um texto, pois promove a articulação dos elementos que o compõem. É o arcabouço formal de que deriva a coerência, e se constrói “através de mecanismos gramaticais e lexicais” (Costa Val, 2006, p. 6). Se os componentes linguísticos não se articulam por meio de tais mecanismos, tem-se um ajuntamento de palavras incapaz de comunicar a intenção de quem escreve.    
        As falhas coesivas são comuns em redações de vestibulandos. Ultrapassam em quantidade os deslizes decorrentes do uso inadequado das palavras. Envolvem, além do plano lexical, aspectos morfológicos e sintáticos, comprometendo a estruturação do pensamento. Também comprometem o sentido, pois é a continuidade promovida pela coesão que assegura a inteireza semântica do texto. Segundo Irandé Antunes, “a continuidade que se instaura pela coesão é, fundamentalmente, uma continuidade semântica” (2005, p. 50).  
         O assunto é objeto de uma diversificada teoria, que não cabe discutir aqui. Nosso propósito é comentar algumas falhas nesse importante fator de textualidade a partir de material produzido por nossos alunos. Elas, grosso modo, decorrem do uso inadequado dos conectivos, do cruzamento de estruturas sintáticas e da falta de correlação entre classes morfológicas. A esse conjunto soma-se o emprego abusivo do advérbio relativo “onde” (o chamado “ondismo”), que preferimos manter num grupo à parte. Vejamos alguns casos que exemplificam cada uma dessas possibilidades.
  
 I - Uso inadequado dos conectivos

           Os conectivos são responsáveis pela articulação lógico-sintática de termos simples e orações. A falha no seu emprego gera incoerência e obviamente compromete a unidade textual. Alguns exemplos:    
          
           (a) “Como os adolescentes têm o organismo menos resistente, por isso podem virar dependentes logo cedo.”
           (b) “O avanço tecnológico, além de suas vantagens e comodidades, traz preocupação a todos nós.”
          (c) “Não queria deixar vovó sozinha a tão pouco tempo da morte do meu avô.”
          (d) “O cigarro é uma irracionalidade, mas não podemos aplaudi-lo”.
          (e) “Uma das práticas que até agora não foi elaborado o conceito é a do ‘ficar’”.
          (f) “O sofrimento é uma etapa da vida em que todos passam por ela.” 
          (g) “Perdi meu pai e fui morar com meu tio em Areia; ele era um sacerdote, no qual aprendi as minhas primeiras noções de latim.”
Em (a), o uso simultâneo da conjunção causal e da consecutiva mostra que o aluno foi incapaz de perceber que as circunstâncias por elas indicadas se expressam com a presença de apenas um dos conectivos. A indefinição quanto à oração principal não gera propriamente incoerência, mas dificulta a apreensão da mensagem.
           Incoerência ocorre nas três passagens seguintes. Em (b), trocou-se um conectivo concessivo (apesar de) por um aditivo (além de). O uso de preposição em lugar de verbo, em (c), transforma passado em futuro e dá a impressão de que o autor da frase foi capaz de prever a morte do avô! E como aceitar, conforme se lê em (d), que sendo o cigarro uma irracionalidade haja algum tipo de contraste em aplaudi-lo?
Os três exemplos seguintes revelam deslizes no uso do pronome relativo, que diferentemente das conjunções e preposições promove a coesão por referência, e não por sequenciação (o relativo representa semanticamente um termo da oração anterior).
O emprego do chamado relativo universal, em (e), confirma a tendência que se observa hoje de evitar o “cujo”. Pareceu difícil ao aluno reconhecer “conceito” como um núcleo modificado pelo adjunto adnominal “uma (das práticas)” e iniciar a oração por “cujo conceito”.
           No exemplo (f) o estudante faz anteceder ao relativo uma preposição inadequada à regência do verbo, quando bem poderia tê-la trocado pelo conectivo correto, que ele usa no fim da frase: “...é uma etapa da vida por que todos passam.” Também por uma falha de regência quebra-se a coesão no último exemplo. O verbo “aprender”, bitransitivo no contexto, rege seu complemento indireto com a preposição “com”, e não “em” (o aluno aprendeu com o seu tio, não no seu tio). Pode ter concorrido para a confusão a presença do adjunto adverbial de lugar; afinal de contas, foi em Areia que ele recebeu do parente as primeiras noções de latim.
           São muitos os casos de ruptura da coesão devido ao uso errôneo dos conectivos. Terminamos com esta curiosa passagem, em que a conjunção e a preposição agrupadas têm sentidos opostos -- “até” indica limite, “enquanto” indica duração: “Os famosos terão que lidar com os fotógrafos das revistas de fofoca até enquanto durarem suas carreiras artísticas”. Associar os dois torna o enunciado incoerente. Ou se suprime o “até”, ou se mantém esse conectivo com a devida alteração do verbo (“até acabarem suas carreiras artísticas”).

            II - Cruzamento de estruturas sintáticas

É comum o aluno juntar duas estruturas que individualmente fazem sentido, mas associadas truncam o enunciado. Isso ocorre, por exemplo, na passagem abaixo:
      
          Segundo o pesquisador britânico Richard Lynn, em entrevista a Época, ele afirma que os ateus são mais inteligentes do que os religiosos.”
         A referência inicial a “Richard Lynn” já diz que ele é o autor da afirmação que vem depois. Não há então necessidade de repetir o pronome e o verbo dicendi (“ele afirma”).  O aluno parece que esqueceu a preposição com que iniciou a frase e acabou  dando-lhe o aspecto de um anacoluto. Deveria ter optado por uma destas construções:  
         1 - “Segundo o pesquisador britânico Richard Lynn, em entrevista a Época, os ateus são mais inteligentes do que os religiosos”;
            2 - “O pesquisador britânico Richard Lynn afirma, em entrevista a Época, que os ateus são mais inteligentes do que os religiosos”.

           Por vezes esse tipo de cruzamento é efeito da associação de alguns verbos e nomes com outros de regências diferentes, o que redunda no uso de conectivos indevidos. É o que ocorre em passagens como: “A pessoa tranquila não está preocupada em vencer de ninguém” e “Discordo com suas idéias”.
          O mau uso das preposições se explica, respectivamente, pelo vínculo mental que se fez entre “vencer” e “ganhar”, que rege complemento introduzido por “de”; e entre “discordar” e “não estar de acordo”, em que o substantivo forma locução prepositiva mediante o acréscimo de “com”.

    III - Falta de correlação entre classes morfológicas     

            A falha de coesão também ocorre quando o aluno supõe que o termo de uma classe gramatical é capaz de estabelecer uma correlação que, sintaticamente, só pode ocorrer com o de outra.  Por exemplo:
 “A sociedade contemporânea apresenta mais problemas emocionais do que em outros períodos de nossa civilização.”
A preposição grifada, introdutora de um adjunto adverbial de lugar, demonstra que o autor pretendeu comparar duas circunstâncias, e não dois sujeitos. Ele não quis dizer que a sociedade contemporânea apresenta mais problemas emocionais do que outros períodos (apresentaram). Pretendeu, isto sim, afirmar que os problemas emocionais na contemporaneidade são mais frequentes do que em períodos anteriores -- o que faz diferença do ponto de vista sintático.
Pareceu-lhe que o adjetivo “contemporânea”, por seu valor semântico, correlacionava-se adequadamente com o segmento de valor adverbial. Evitaria a ruptura se tivesse escrito, por exemplo: “A sociedade apresenta mais problemas emocionais hoje do que em outros períodos de nossa civilização.”
Na frase que segue, a ideia contida no substantivo “conflitos” é retomada pela expressão vicária “faz isso”, que só poderia substituir o conteúdo de um verbo: “Apesar dos conflitos constantes, eu sei que minha mãe só faz isso para me ajudar e quer o melhor de mim.”
A noção de “brigar”, latente em “conflitos”, levou à falha coesiva. Explicitando-se a ação verbal, corrige-se a quebra: “Minha mãe briga constantemente comigo, mas sei que ela só faz isso para me ajudar e quer o melhor de mim.”
Podem-se incluir nesse grupo os casos em que a falta de correlação se dá devido à confusão entre as subclasses que englobam agente e paciente, ou vice-versa. Embora pertença à mesma classe morfológica do termo anterior, o elemento que retoma esse termo difere do antecedente pelo maior grau de concretude ou abstração que possui. Exemplos:

(h) “O consumismo é o ato de comprar de forma compulsiva, sem necessidade e consciência. Difere do consumidor, pois este compra o que é necessário para a sua vida.”
(i) “O professor, sinônimo de educação, deveria ser considerada uma das profissões mais respeitadas e dignas.”

“Consumismo”, que é a prática de comprar em excesso, não se correlaciona com “consumidor”, que é quem compra. Não haveria quebra se o sujeito do primeiro período   fosse o substantivo “consumista” -- fazendo-se, é claro, as alterações no predicado. Ou se, em vez de “consumidor”, aparecesse uma expressão como “mero consumo”.
Semelhantemente, em (i), “professor” deveria se correlacionar com “profissionais”. “Profissões” só caberia se o sujeito do primeiro parágrafo fosse, por exemplo, o substantivo “magistério”. A falta de correlação provocou, inclusive, falha na concordância da voz passiva (“deveria ser considerada”).

         IV - Ondismo 

         Ondismo é o emprego despropositado do advérbio relativo “onde”. O normal é usá-lo como introdutor de orações adjetivas, mas a tendência de alguns alunos é fazer dele uma espécie de muleta, um conectivo-ônibus, que liga qualquer oração. Os exemplos abaixo mostram isso:  

(j) “Esses indivíduos possuem o humor instável, onde as pessoas ao seu redor manipulam-nos facilmente.”
Aqui a presença do “onde”, que não retoma nenhum termo anterior, tende a mascarar a relação existente entre as orações (que é de causa e conseqüência). Em vez de “onde”, caberia “por isso” ou conectivo equivalente.   
            (l) “O bate-papo da internet está assassinando a língua portuguesa, onde é utilizado apenas por pessoas que têm base escolar”.
            A que antecedente se refere o “onde” nessa passagem? Na cabeça do aluno, à internet, que seria o lugar onde ocorre o bate-papo que está assassinando a nossa língua. Estranho é que participem do chat apenas as pessoas “que têm base escolar”. Que fariam com a flor do Lácio as que não a têm?
          (m) “De tudo que meu avô me ensinou, essa foi a maior lição, onde a alegria transforma o impossível em possível.”
Esse é mais um exemplo que confirma a importância da função coesiva para a leitura. O uso inapropriado do “onde” dificulta a percepção do que o avô ensinou. Tão simples dizer que sua maior lição foi “que a alegria transforma o impossível em possível”.

Os problemas apontados refletem um despreparo que não é apenas de natureza gramatical. Ninguém decora conectivos para aplicá-los bem, pelo contrário: aplica-os bem quando é capaz de perceber as relações que eles estabelecem entre as ideias.
Infelizmente boa parte dos alunos não é capaz de estabelecer essas relações e usa os elementos coesivos apenas por um imperativo escolar. Escreve o que lhe vem à cabeça e, como diz Alcir Pécora, “desliga o sentido do relator do sentido da relação” (1999, p. 77). Com isso, revela-se incapaz de conferir aos componentes do discurso nexo e coerência. Cabe à escola trabalhar essas deficiências enfatizando a leitura. Só aprendendo a ler, o estudante perceberá a natureza e o sentido dos enlaces que se estabelecem entre as palavras -- condição primeira para produzir com eficiência um texto.

                                                 Bibliografia

ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras; coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. 
COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
PÉCORA, Alcir. Problemas de redação. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Sobre gramática e escrita



(Texto escrito a partir de um breve questionário enviado ao "Grupo do Bigode" pelo professor e gramático Fernando Pestana.)

       A gramática ajuda a escrever certo, mas não a escrever bem. Ela propicia a correção, mas não o engenho e a expressividade. Há exemplos de bons escritores que não dominam as regras gramaticais.
A capacidade de escrever bem é inata, pressupõe o dom, aprimorado na leitura de grandes autores e na prática constante. Caracteriza o escritor, que se distingue do redator. Redator se faz; escritor nasce. O fato de conhecer as normas gramaticais, no entanto, se não é imprescindível ao escritor, não deixa de ser para ele de muita utilidade. Poupa-o de apelar a revisores para acertar uma concordância, uma colocação pronominal ou o emprego adequado de um vocábulo.
A gramática tem importante papel no âmbito escolar (e, por extensão, jurídico, filósofico, profissional) por enfocar noções básicas sobre a estrutura e o funcionamento da língua. A escola é o lugar onde se aprende a norma culta, que propicia a disciplina do pensamento e o rigor no uso das palavras segundo parâmetros gerais (universais). A norma se fundamenta na prática linguística correta, que se torna referência pela possibilidade de se erigir em padrão.
           Não se confunde com o estilo, que é uma variante particular, pessoal. Essa é a razão pela qual nem sempre se podem tomar os escritores como referências para o estabelecimento das normas gramaticais. A norma advém de uma prática que prima pela correção, e nem sempre quem escreve (penso no artista literário) está preocupado com isso. Já li em Guimarães Rosa uma construção do tipo “Eu, gosto”, perfeitamente cabível no contexto. Como uma frase dessa pode servir de abonação à regra segundo a qual não se e separa o sujeito do predicado? Drummond deu a esse mesmo verbo uma regência incomum para melhor associá-lo a “amar” na  conhecida “Balada do amor através das idades” (escreveu “eu te gosto”, que é bem mais informal e íntimo do que “eu gosto de ti”; traz o pronome, o objeto, para junto do emissor).  
          Contestar o ensino gramatical na escola é um erro. O problema é que certos linguistas querem que adolescentes em idade escolar tenham uma visão científica da língua. Ora, esses jovens estão num período de aquisição de conceitos básicos e precisam conhecê-los até para depois, se for o caso, contestá-los. Como no ensino médio ignorar as noções de oração, frase ou período? Quem fizer isso sentirá dificuldades em tópicos como concordância e pontuação.
         Para bem compreender os desvios normativos (responsáveis pelos efeitos de estilo), é preciso primeiro conhecer a norma. Como ensinar figuras de sintaxe a quem ignora, por exemplo, o que são ordem direta e ordem inversa? E como distinguir uma da outra sem saber identificar os termos oracionais? Concordo com que para pontuar bem deve-se “ouvir” o texto, mas a aquisição dessa habilidade exige boa base de leitura (inclusive de poesia, que educa o ouvido) – o que nossos alunos infelizmente não têm. 
       Uma coisa é a gramática, outra é a linguística. Esta pode arejar o ensino gramatical, impedindo que ele empaque na gramatiquice, mas não o substitui. Até mesmo porque essa não é a sua função. Uma ciência que pretenda ter um caráter normativo (e não se contestam normas sem implicitamente propor outras) descaracteriza-se como ciência.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

"Redação sem risco"

"Redação sem risco" contém comentários preciosos sobre alguns dos procedimentos necessários à produção de um bom texto. O material foi elaborado com base em nossa experiência em sala de aula, ensinando redação para candidatos ao Enem e a concursos públicos. Coesão, coerência, concisão, adequação vocabular são alguns dos tópicos abordados em textos curtos e objetivos, que lhe mostrarão o que é preciso para captar o interesse do leitor. Entenda por que a boa argumentação é o resultado da correção gramatical, de um bom nível de informação e do raciocínio claro. Acesse o site da Amazon, e boa leitura!
eia!   

domingo, 22 de dezembro de 2019

10 conselhos a quem vai ensinar redação


Não ensine como fazer; mande primeiro os alunos fazerem. Ao corrigir o que escreveram, eles entenderão como deve ser feito.
                                                      
Não corrija uma oração, um período, um parágrafo sem explicar o motivo da correção e discutir com a turma uma melhor alternativa. Se o aluno não entender por que errou, ele tenderá a repetir o erro.
                                                     
Pense muito antes de dar um 10. A nota máxima pode dar ao estudante a impressão de que não precisa aperfeiçoar o texto. Além disso, é preferível que no vestibular ele se surpreenda para mais do que para menos.
                                          
Procure mostrar a importância do respeito à norma culta. Erros de gramática ou ortografia são facilmente notados. Mesmo que não prejudiquem a comunicação, diminuem a credibilidade de quem escreve.
                                                   
Procure mostrar aos alunos a diferença entre redigir e escrever (no sentido literário).  Um redator se faz, um escritor nasce. Logo, a boa redação está ao alcance de todos. Só depende de leitura, estímulo e muito, muito treino.
                                                   
Estimule a leitura de ficção e poesia. O contato com os textos literários amplia a sensibilidade, revela as inúmeras possibilidades da língua e aumenta a capacidade interpretativa.
                                                  
Procure ressaltar a diferença entre escrever certo e escrever bem. A gramática não assegura a expressividade nem a boa organização textual. Tente mostrar isso comparando textos apenas “certinhos” com outros nos quais prevalecem a invenção e a expressividade.
                                                 
      Declare guerra ao lugar-comum e à imprecisão vocabular, motivando os alunos a ir ao dicionário. O lugar-comum anula a personalidade do redator, e a imprecisão vocabular compromete o rigor do pensamento. Usar os termos adequados é um dos segredos de redigir bem.
                                                
Escolha com cuidado os temas a serem desenvolvidos. Lembre-se de que cada tema é pretexto para leituras sobre a atualidade e um meio de aumentar o acervo de informações do aluno. Sem informações suficientes, é impossível apresentar bons argumentos.     
                                     
Leia em voz alta algumas das redações corrigidas, destacando-lhes os aspectos positivos e os negativos. Os alunos têm curiosidade sobre os textos uns dos outros e encaram como saudáveis desafios as produções bem escritas, que testemunham a evolução dos colegas.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

A redação do Enem 2019 em tela


O tema da redação do Enem deste ano não deixou de causar surpresa. Como ocorreu em 2017, quando foram abordados os desafios para a formação educacional dos surdos, em 2019 a proposta se desmembrou num tópico geral (a arte) e em outro específico (o cinema). Muitos professores que em 2017 trabalharam o tema da inclusão certamente não se detiveram nas dificuldades da comunidade surda. Da mesma forma, o tema da democratização da arte (e, por extensão, da cultura) deve ter ocorrido a muitos, que dificilmente o terão vinculado ao cinema.  
Ao priorizar uma classe, ou um setor, a banca visa não só aprofundar o recorte temático (impedindo que o candidato generalize e fique no assunto), como também trazer um componente de surpresa que aumente a dificuldade no desenvolvimento do tema. Essa não deixa de ser uma forma de identificar os bons candidatos, ou seja, aqueles que se mostrem capazes de extrair dos textos motivadores informações que lhes permitam produzir uma redação convincente.  
Os textos que a banca selecionou para compor a coletânea são abrangentes e informativos, mas sobretudo o III e o IV estabelecem um vínculo com a palavra-chave: democratização. A banca não queria que o candidato abordasse o cinema como arte inovadora (Texto I) ou como um meio de transfiguração da experiência pessoal (Texto II). Queria que o fizesse levando em conta as novas possibilidades (ou não) de acesso às películas. É nos textos III e IV que efetivamente se problematiza o tema, e deles é que podiam surgir as propostas de intervenção (embora, claro, isso dependesse muito do posicionamento assumido pelo aluno).         
Grosso modo, pode-se dizer que os dados e percentagens apresentados no texto III problematizam o tema em função de um desafio para a classe média: como fazer as pessoas desse segmento social sair de casa para ir ao cinema? Isso faz pensar nas estratégias adotadas pelas companhias exibidoras para encher as salas (combos, poltronas superconfortáveis, projeções em 3 D). Já o texto IV contempla os estratos sociais de baixa renda, mostrando com dados e cifras que o cinema tem se tornado um privilégio dos centros financeiramente abonados.  O interior, por não ter grandes shoppings, não conta com salas de exibição (apesar de servir de cenário para filmes como “Bacuaru”, que ganhou vários prêmios no exterior; isso não deixa de ser uma irônica contradição).
   A quem não se deteve nos pontos que venho mencionando, lembro que os textos motivadores (como o nome diz) “motivam” porém não esgotam. Uma boa redação se mede pela consistência e a coerência, e não pelo simples fato de contemplar um aspecto da coletânea. A ideia de democratizar, tornar público, é muito ampla. Envolve por exemplo o Ministério da Cultura, que poderia entre outras medidas buscar atender a uma antiga reivindicação da comunidade surda e inserir legendas nos filmes nacionais (num tempo em que se fala tanto em inclusão, ela tem sido injustamente privada de conhecer as realizações cinematográficas do seu país). Envolve também os clássicos agentes “escola” e “família”, que podem agir como promotores (ou ao menos encorajadores) do acesso às produções cinematográficas.
À escola caberia, por exemplo, incentivar a criação de cineclubes, realizar debates sobre filmes importantes ou promover seminários que tratassem da relação entre o cinema e as outras artes (sobretudo a literatura). Já a família poderia estimular a ida às salas de cinema como complemento ao processo educativo, que não pode prescindir da formação cultural. Eu, por exemplo, ainda hoje sou grato ao meu pai pela mesadinha para assistir às sessões do cinema de arte no Cine Municipal às quintas-feiras. Graças a essa prática, afeiçoei-me a nomes como Fellini, Antonioni, Buñuel, Godard e tantos outros.
 Por falar em Godard, é dele a famosa definição do cinema como “a verdade 24 vezes por segundo” (referência ao número de vezes em que os fotogramas giram no projetor para dar a impressão de movimento). O cinema seria uma ilusão que amplifica a verdade. De tão boa, a citação do francês bem que poderia servir de remate a um texto sobre o tema. Vou aproveitar a dica e fechar com ela este artigo.

sábado, 28 de setembro de 2019

Sobre a gramática no texto

É impressionante o descaso com que as escolas, de modo geral, vêm tratando o ensino da gramática. Constato isso nas redações que corrijo. A maioria dos alunos não consegue identificar o sujeito de uma oração porque não sabe colocá-la na ordem direta. Tal desconhecimento gera erros de concordância, que interferem na coesão.
A falta de embasamento sintático, associada a falhas semânticas, produz enunciados ilógicos que também comprometem a coerência. Os alunos precisam aprender a pensar, estruturar com clareza um enunciado, expandir e refinar o vocabulário -- e não apenas reconhecer o registro conveniente a determinadas situações sociais. Isso se aprende no cotidiano. Na escola ele deve aprender a ler bem, exercitar o raciocínio, assimilar o bom exemplo de grandes autores.
             É fácil corrigir alguém que, numa redação, usa “grana” em vez de “verba”; diz-se que “grana” é coloquial e não cabe num texto como o dissertativo-argumentativo. O que podemos fazer, no entanto, quando nos deparamos com construções como as que seguem? “Se as pessoas tem o direito de ir e vir, ou seja, a liberdade de locomoção e expressar a sua opinião. Portanto, o normal seria haver uma harmonia entre essas diretrizes”; “Com a falta de ética na governação do país terá como consequência a corrupção, atualmente o Brasil está ocupando a 96º país quando o assunto é combate a corrupção.”; “Um dos principais rios que cortam o Estado de São Paulo, o Tietê, considerado um rio morto em grande parte de sua extensão, é resultado desse descaso.” São de alunos do terceiro ano. Parece-me que falar em inadequação a propósito delas é muito.
           Falar em “inadequação” em vez de “erro” me parece pouco para convencer os alunos do ensino médio a escrever com o devido respeito à gramática. Entendo que o que se chama de “erro” é antes um cruzamento de registros (o coloquial descuidado superpondo-se ao culto, por exemplo). Mas é preciso ensinar a norma culta em algum lugar, e esse lugar é a escola.
          Como diz José Saramago, “cabe à escola ensinar o aluno a escrever corretamente e também explicar por que as regras são assim, e não de outra maneira. Mas escola não é o lugar onde se subverte e revoluciona a estrutura da língua. Essa tarefa pertence aos escritores, se estes consideram que têm motivos para o fazer.”

sexta-feira, 21 de junho de 2019

Enem - Refazendo uma proposta de intervenção

    O fragmento abaixo constitui a conclusão de uma redação argumentativa sobre os problemas do envelhecimento no Brasil. Leia-o:

     Logo, tornam-se imprescindíveis reformas de âmbito governamental para contribuir no bem-estar desse montante populacional crescente, com alterações no sistema público de saúde, desde a sua estrutura até a adesão de médicos qualificados para o tratamento de idosos, principalmente com doenças crônicas, a privatização e modernização de asilos, objetivando melhorar a qualidade no cuidado aos mais velhos, e uma maior fiscalização quanto ao respeito e cumprimento dos benefícios a essa faixa etária, que é essencial na sociedade brasileira.
        
     Os principais pontos negativos dessa passagem são:

1) falta de pontuação;
2) acúmulo de propostas sem nenhum elemento de ligação entre elas;
3) uso excessivo de substantivos em vez de infinitivos.

  O resultado é um nivelamento caótico de informações apresentadas num só período, o que dificulta a leitura e enfraquece as sugestões.

   Uma forma de melhorar o texto é destacar as propostas apresentadas (em negrito) e elencar as tarefas associadas a cada uma. Podem-se já substituir os substantivos por infinitivos:

- alterar o sistema público de saúde
(como?) modificando-lhe a estrutura e contratando médicos qualificados
- privatizar e modernizar os asilos
(para quê?) melhorar a qualidade do cuidado com os mais velhos
- fiscalizar o cumprimento dos benefícios

    O passo seguinte é reescrever o texto inserindo os operadores argumentativos, que vão estabelecer a ligação entre os períodos. Como nessa parte do texto não há argumentação, tais operadores vão ser basicamente de acréscimo (também, ainda, ademais etc.):

      Logo, são imprescindíveis reformas que contribuam com o bem-estar desse crescente segmento populacional. O governo deve alterar o sistema público de saúde, modificando-lhe a estrutura e contratando médicos qualificados para o tratamento de idosos – sobretudo os que padecem de doenças crônicas. É preciso também privatizar e modernizar asilos, objetivando a melhora no cuidado com os mais velhos. É necessário ainda fiscalizar o cumprimento dos benefícios destinados a essa faixa etária, que é essencial para a sociedade brasileira.